segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A TORRE E A EMPRESA BÉLICA (Lc 14, 28 ss.)

PELA RENÚNCIA VOLUNTÁRIA A TODOS OS TERES REALIZA O HOMEM O SEU SER

Entre os seguidores de Jesus havia muitas pessoas de boa vontade, dispostas a serem virtuosas – mas havia poucos sapientes, dispostos a se desapegarem de todo e qualquer apego ao ego humano para se entregarem sem reservas ao Eu divino.
A esses discípulos medíocres, indecisos, vacilantes, propõe o Mestre duas pequenas parábolas para mostrar que, com essas meias medidas, não alcançariam a meta suprema, a redenção ou auto-realização.
Como muitas outras parábolas, também estas duas, referentes à construção de uma torre e ao empreendimento bélico, são flagrantemente paradoxais, incompreensíveis à luz do nosso ego humano.
Quando alguém quer construir uma torre – digamos, um arranha-céus de trinta andares – não deve começar a construção sem primeiro fazer um orçamento cuidadoso, calculando se tem os recursos suficientes para terminar o edifício; do contrário, terá de deixar a obra inacabada, com grandes prejuízos, e, ainda por cima, se expõe ao escárnio dos vizinhos, que o tacharão de inepto e tolo.
Ou, se alguém resolver declarar guerra a outro país, deve calcular primeiro se, com dez mil soldados, pode sair ao encontro de um exército de vinte mil; do contrário, depois de iniciar a guerra, e vendo-se inferior ao inimigo, será obrigado a solicitar convênio de paz, que, como se sabe, são sempre humilhantes e desastrosos para o derrotado.
Até aqui, Jesus falou como um verdadeiro perito em assuntos militares. Tem-se mesmo a impressão de ouvir falar um moderno Rockefeller ou Einsenhower. E o leitor de nossos dias esperaria que o Mestre prosseguisse na mesma linha de lógica e perícia, recomendando ao construtor da torre que arranjasse o dobro ou triplo do dinheiro para terminar o seu arranha-céu inacabado; esperaríamos que aconselhasse ao general do exército de dez mil soldados que duplicasse o efetivo das suas forças militares, para poder derrotar o inimigo que dispõe de vinte mil soldados.
É o que todo homem sensatamente egocêntrico esperaria.
Mas, com imenso espanto nosso, o Mestre propõe exatamente o contrário. Em vez de aumentar os recursos para a vitória final, manda ele diminuí-los, não pela metade, mas até zero – a fim de poder vencer... Manda subtrair em vez de adicionar.
A conclusão das duas parábolas, da torre e da guerra, é a seguinte:
“Do mesmo modo, não pode nenhum de vós ser meu discípulo se não renunciar a tudo que tem”.
O Mestre manda reduzir a zero tudo que o homem tem, ou pode ter, a fim de intensificar ao máximo o seu Ser. Os seus teres são o motivo da sua derrota, o seu Ser é garantia de vitória. Ter algo é desastroso – ser alguém é glorioso. O ter é inversamente proporcional ao ser.
Quem tem muitos algos não os deve aumentar para vencer, mas deve renunciar a todos eles, a fim de ser alguém – e só assim é que pode construir a torre da sua auto-realização e derrotar os inimigos da mesma, o ego e seus aliados.
“Bem-aventurados os pobres pelo espírito – porque deles é o Reino dos Céus”.
É deveras estranha, e positivamente incompreensível, essa linguagem dos grandes Mestres da sapiência e da potência. A consciência deles habita numa dimensão totalmente diferente da nossa; para nós, o poder está na quantidade – para eles, na qualidade. Para nós, poder é ter muito – para eles, renunciar voluntariamente ao ter é realizar o ser.
Que sabemos nós do Ser? É uma palavra abstrata, e nada mais – para os Mestres o Ser é a quintessência de todo o poder.
Há quase 2000 anos que esta sapiência apareceu na face da terra – mas quem a compreendeu? Dentre os que se dizem discípulos do Cristo não há 1 entre 1.000.000 que compreenda e viva a realidade do seu ser, do seu Eu, da sua alma. Ser cristão é, para nós, uma convenção social, uma rotina tradicional – não é uma experiência interior.
Nos últimos tempos, está prevalecendo cada vez mais a ânsia do autoconhecimento e da auto-realização. Quase 2000 anos de chamado cristianismo nos alheiaram do Cristo; mas a alma humana, crística por sua própria natureza, tem veementes anseios de cristificação.
Quem lê o Evangelho superficialmente tem a impressão ingrata de que o Cristo vivia totalmente no mundo do além, e nada queria saber do mundo do aquém; quantas vezes repete ele “quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo”. Em face desse aparente além-nismo, o grosso da humanidade, que não pode viver sem ter algo, desanima e acaba por se convencer de que a mensagem do Cristo é para uma pequena elite de privilegiados, de místicos escapistas, e que a humanidade como tal não pode realizar essa mensagem transcendental.
Esta é a impressão à primeira vista, e muitos nunca conseguem emancipar-se dessa impressão desanimadora; os aquém-nistas nada sabem do além-nismo. Limitam-se apenas a certas práticas cristãs externas, ou se tornam totalmente indiferentes à mensagem do Cristo.
Somente uma visão e uma vivência mais profunda do Evangelho nos convence de que Jesus não era um espiritualista místico, um além-nista alheio às coisas do aquém. O que nele havia de diferente e incompreensível é o modo como o homem deve possuir as coisas materiais. Diz ele, com absoluta clareza: “Vosso Pai celeste sabe que de tudo isto haveis mister”, isto é, que tendes necessidades das coisas materiais, casa, roupa, alimentos, etc., para uma vida dignamente humana; ele não nega absolutamente que o homem deva possuir certos bens e certo conforto material; Jesus nunca professou a filosofia nihilista de Diógenes, que fazia consistir a felicidade em não ter nada e não desejar nada.
O que há de estranho na mentalidade do Nazareno é uma certa matemática desconhecida: ele deriva o ter material do ser imaterial. Para ele, a raiz de todos os teres é o Ser; os algos, ou objetivos da vida, vêm da consciência do alguém, da consciência da nossa razão-de-ser.
Resumindo em poucas palavras a filosofia cósmica, diz ele: “Buscai, portanto, em primeiro lugar o Reino de Deus e sua harmonia – e todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo”.
Não diz que não necessitamos das outras coisas, dos bens materiais, para um conforto normal da vida; diz que estas coisas materiais nos serão dadas de presente, e não em consequencia dessa desenfreada lufa-lufa que caracteriza a vida dos profanos, que não buscaram o Reino de Deus, isto é, a realização do seu Eu divino.
Jesus não condena o fato de termos bens materiais, mas sim o modo errôneo como o homem profano procura apoderar-se deles e possuí-los.
Jesus nunca sofreu falta de nenhum bem material digno de uma vida humana; se renunciou a muitos deles, fê-lo livremente, e não compulsoriamente; se diz que não tem onde reclinar a cabeça, é porque não sentia necessidade desse conforto do ego em face da plena realização do seu Eu crístico.
Logo no início da sua vida pública, vai ele a uma festa de casamento, onde oferece aos convivas 600 litros do melhor vinho que já se bebera em Canaã da Galiléia, como afirma o mordomo da festa; aceita convite para jantares, até de publicanos e pecadores; aceita as homenagens de Maria de Betânia, aceita uma verdadeira apoteose nacional no domingo de ramos; anda muito bem vestido, ao ponto de os quatro soldados romanos que guardavam a cruz repartirem entre si as vestimentas dele, e, sobrando ainda a túnica inconsútil, lançam sobre ela a sorte.
Jesus nunca andou de tanga, como certos místicos orientais, nem sem tanga como Diógenes.
Há, na pessoa do Nazareno, um perfeito equilíbrio entre o seu Eu espiritual e o seu ego humano. Ele não é um materialista profano, nem um espiritualista místico – ele é o homem cósmico por excelência. Dizer que não levou vida integralmente humana por não ter casado, é desconhecer totalmente a natureza real do homem. A libido é herança nossa do mundo animal, que um homem superior pode dispensar sem deixar de ter verdadeiro amor humano. É impressionante o amor que Jesus tinha à sua discípula predileta Madalena; idem a Maria de Betânia e ao discípulo amado João, que o acompanha até ao Calvário.
Todas as coisas dignamente humanas serão dadas ao homem superior que realiza em si o Reino de Deus.
Mas em primeiro lugar o homem tem que renunciar a tudo que tem, para construir a torre da sua auto-realização e derrotar o seu ego. O homem tem que renunciar a tudo que seu ego humano tem, a fim de construir a torre do seu Eu espiritual e alcançar a vitória sobre seus inimigos.
Com muita sabedoria diz Krishna na Bhagavad Gita, o ego é o pior inimigo do Eu, mas o Eu é o melhor amigo do ego... O ego é um péssimo senhor – mas é um ótimo servidor.
Quando o ego humano se integrar totalmente no Eu divino então será ele altamente beneficiado.
É esta a suprema sapiência da parábola da construção da torre e da empresa bélica.