segunda-feira, 29 de setembro de 2008

O ADMINISTRADOR DESONESTO (Lc 16, 1 ss.)

USAR PARA FINS ESPIRITUAIS OS BENS MATERIAIS

A parábola que maior incompreensão, desapontamento, e até revolta tem causado no mundo cristão é sem dúvida a do administrador fraudulento. A tal ponto chegou a incompreensão, que muitos leitores chegam a duvidar que Jesus tenha proferido essa parábola; muitos acham que se trata de uma interpolação posterior, feita por algum autor desconhecido.
O auge do escândalo está nas palavras seguintes de Jesus: “Granjeai-vos amigos com as riquezas da iniqüidade, para que, quando vierdes a falecer, vos recebam nos eternos tabernáculos”.
É um convite manifesto, dizem os revoltados, para a fraude, a desonestidade, em flagrante contradição com toda a doutrina de Jesus.
Esta incompreensão, ou mesmo descompreensão, das palavras do Mestre “granjeai-vos amigos com as riquezas da iniqüidade” se baseia na suposição errônea de que possa haver iniqüidade ou maldade nas riquezas, ou em outro objeto físico qualquer.
Não existe, em toda a natureza, um único objeto que seja moralmente mau, ou moralmente bom.
Bondade ou maldade moral são atributos único e exclusivo de seres dotados de livre arbítrio. Creatura que não tenha “comido do fruto da árvore do bem e do mal”, como o livro do Gênesis chama o livre arbítrio, não pode ser moralmente boa nem moralmente má; não pode cometer atos bons nem atos maus. Um pedaço de metal ou farrapo de papel, chamado dinheiro, é algo moralmente neutro, nem bom nem mau.
Se Jesus tivesse dito “granjeai-vos amigos com a iniqüidade das riquezas” não teríamos como justificar suas palavras, porque teria recomendado fraudulência. Mas o Mestre não disse isto. O que ele recomenda é algo de perfeita sapiência e retitude: recomenda a seus discípulos que usem o objeto neutro dinheiro para praticar o bem – o mesmo objeto neutro que aquele administrador usou para praticar iniqüidade. Quem praticou o mal não foi o dinheiro do administrador, mas sim o administrador, o seu livre arbítrio de homem, e não o livre arbítrio do dinheiro, que não existe. Nenhum objeto, seja ele qual for, pode praticar o mal (ou o bem) porque não há objeto dotado de livre arbítrio. Todo e qualquer objeto animado ou inanimado – mineral, vegetal, animal – é moralmente neutro, como já dissemos, nem bom nem mau. Aqui na terra, é o homem a única creatura capaz de ser boa ou má, segundo o uso ou abuso da sua liberdade.
Assim como o administrador se serviu do dinheiro para fazer o mal, assim, recomenda Jesus, deve seu discípulo servir-se do dinheiro (ou outro objeto qualquer) para fazer o bem.
Toda a dificuldade do homem, aqui na terra, está em assumir atitude correta em face dos bens materiais.
Três atitudes são possíveis: abusar, recusar, usar.
O homem profano considera os bens terrestres como um fim em si mesmos – isto é abusar.
O homem místico não se serve dos bens materiais nem como fim nem como meio – isto é recusar.
O homem de consciência cósmica não considera os bens terrestres como um fim, mas sim como meios para um fim superior – e isto é usar.
Na parábola, o administrador abusou dos bens materiais, cometendo injustiça. Jesus recomenda a seus discípulos que se sirvam desses mesmos bens como meios para um fim superior, e isto é usar. A atitude do uso, silencia a recusa.

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Nesta parábola aparece a maravilhosa atitude cósmica do Nazareno. Se ele fosse um profano, teria recomendado o abuso do dinheiro para o mal, como fez o administrador. Se ele fosse apenas um místico, teria simplesmente recomendado a recusa, ou seja o não-uso, do dinheiro como sendo mau em si mesmo, “excremento de satanás”, como diz um escritor moderno. Mas, como Jesus não era um profano, nem um místico, mas o homem cósmico por excelência, não recomendou nem o abuso, nem a recusa, mas sim o uso correto do dinheiro.
Não são os bens materiais em si que possam granjear amigos no mundo espiritual,mas é o uso correto que deles fizermos. Todo o objeto é espiritualmente neutro, indiferente; mas o sujeito, o livre arbítrio do homem, lhe dá valor positivo, ou desvalor negativo. A atitude boa em face do “pouco” dos bens materiais torna o homem bom no “muito” dos bens espirituais. O valor do sujeito valoriza o sem-valor do objeto.
Aliás, toda a vida do Nazareno é caracterizada por essa consciência cósmica, eqüidistante do abuso dos profanos e da recusa dos místicos; ele não abusa nem recusa, mas simplesmente usa os bens materiais. Ele não é da escola do ricaço Epicuro, nem do mendigo Diógenes; não mora em palácio nem em tonel; não se veste com seda e púrpura, nem vive de tanga ou sem tanga; não vive no luxo nem no lixo. Jesus não é um profano gozador como Herodes, nem um asceta renunciador, como o Batista; ele come como todos comem; ele se veste como todos se vestem. Logo no início de sua vida pública vai a uma festa de casamento, onde transforma água em vinho, e vinho ótimo; senta-se à mesa com publicanos e pecadores, aceita a ardente homenagem de Maria de Betânia e as entusiásticas ovações populares no domingo de ramos – e apesar de tudo isto, pode dizer: “As raposas têm suas cavernas, as aves têm os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”.
A verdadeira renúncia não é, em primeiro lugar, uma renúncia externa, mas sim um uso sem abuso. Possuir sem ser possuído – isto é renúncia, pobreza pelo espírito. Pode um milionário não ser possuído por aquilo que possui, e pode um mendigo ser possuído por aquilo que não possui, mas deseja desregradamente possuir. Mais importante que possuir ou não possuir é saber como possuir ou não possuir. Já na antiguidade era esta a grande sabedoria dos filósofos estóicos.
Abusar é proibido.
Recusar é permitido.
Usar é recomendado.
A parábola do administrador desonesto é a mais deslumbrante apoteose do espírito cósmico do Cristo.