quarta-feira, 24 de setembro de 2008

O FILHO PRÓDIGO (Lc 15,11)

EVOLUÇÃO DO HOMEM ATRAVÉS DE ERROS HUMANOS PARA A VERDADE DIVINA

A história do Filho Pródigo é, quase sempre, apresentada exclusivamente como a parábola clássica da misericórdia de Deus para com o pecador penitente. Oradores e escritores fazem dela um poema melodramático e sentimental do amor de um Pai que recebe de braços abertos um filho ingrato que, finalmente, se arrepende dos seus desvarios e regressa à casa paterna. Esse pai misericordioso é Deus, e o filho pródigo é qualquer pecador que se converte.
Não é intenção nossa excluir totalmente essa interpretação comovente.
Entretanto, à luz do texto original do primeiro século, não cremos que seja esta a quintessência, o alfa e ômega, da história narrada por Jesus. Por entre as linhas aparece algo infinitamente mais profundo e sublime, mais cósmico e ontológico, do que esse drama do amor paterno e da humildade filial.

A história do filho pródigo – que, no Evangelho, não é chamada parábola – é o drama da evolução ascensional do homem e a epopéia multimilenar da própria humanidade. Podemos até afirmar que, nessa narrativa, atingiu o espírito do Nazareno as mais excelsas culminâncias da sua visão cósmica sobre o homem individual e sobre a humanidade universal.
A fim de compreendermos devidamente o poema cósmico do filho pródigo, devemos, acima de tudo, remontar ao texto grego do primeiro século, nem sempre fielmente reproduzido em nossas traduções.

No texto grego original de Lucas – o único evangelista que refere o fato e que escreveu diretamente em língua grega – lemos o seguinte: “Um pai tinha dois filhos. Disse-lhe o mais novo: Pai, concede-me a parte da natureza que me convém”.
A vulgata latina traduz: “Dá-me a porção da substancia que me pertence”. Substância, em latim, pode significar “aquilo que subestá”, que subjaz à minha vida, que é a minha natureza humana de jovem. Mas os tradutores entendem, geralmente, por substancia o dinheiro.
O texto original grego é bem claro quando diz: “A parte da minha natureza (ousia, do verbo einai, que significa “ser”) que me convém (epibállon)”.

Que é que o filho mais novo, talvez de 15 anos, pede ao pai?
Muitos pensam que ele tenha pedido a parte dos bens materiais a que julgava ter direito, e o pai teria distribuído entre os dois filhos os bens da família, na medida do direito de cada um. Mas, teria um rapaz o direito de pedir isto ao pai? E, se assim acontecera, como se entende que, após o regresso do filho pródigo, o filho mais velho diz ao pai que nunca recebeu nada dele? Se houvesse partilha dos bens, teria o filho mais velho recebido a sua parte, e não se poderia queixar.
O texto grego não se refere a partilha dos bens, fala da parte da natureza (ousia) que ao jovem convém. Isto é, o jovem reclama o direito da sua juventude, insiste na sua liberdade pessoal de jovem independente, faz valer o direito de não mais ser criança dependente, mas adolescente autônomo. Pede um modo de vida conveniente (epibállon) à sua natureza de jovem.

O pai reconhece em silencio, essa conveniência; não protesta, não dissuade o jovem com nenhuma palavra; reconhece que ele deve iniciar a fase da sua adolescência. Também não aparece nenhuma mãe chorando e dissuadindo o filho de gozar os direitos da sua mocidade independente.
Em silencio, “o pai dividiu entre eles a vida” (bios). A palavra grega “bios” quer dizer “vida”, onde a Vulgata Latina repete a mesma palavra “substancia”.
O pai dividiu a vida (bios) entre os dois filhos: o mais velho continua na sua vida dependente, o mais novo inicia uma vida independente. Ou seja: o filho mais novo desperta para o segundo estágio da sua evolução hominal, deixa de ser criança inexperiente, e passa a ser um jovem experiente da sua ego-personalidade – ao passo que seu irmão mais velho continua estagnado no plano do seu infra-ego inexperiente; não comeu ainda do “fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal”, como diria Moisés.

Com o despertar da personalidade entra o jovem na fase da liberdade. O livre-arbítrio recém-despertado, manifesta-se primeiro em forma negativa, porquanto o ego humano é essencialmente centrífugo, separatista, dispersivo, anticósmico.
E durante muito tempo continua a ego-personalidade a viver exclusivamente nessa dimensão da egoidade hipertrofiada, esbanjando todas as suas potencias numa vida dissoluta, como é invariavelmente a vida com 100% de ego-consciencia e 0% de Eu-consciencia.
E, como toda a culpa livremente cometida gera sofrimentos necessariamente subseqüentes, no ponto culminante das maldades aparecem os males.

O jovem começa a sofrer as inevitáveis conseqüências das suas culpas. Sofre, sofre, sofre...
Mas o sofrimento não o levou, logo de início, à redenção. O jovem sofredor culpado procura libertar-se dos males sem se redimir da maldade; associa-se a um pecador inveterado na maldade e dele espera libertação dos seus males. O jovem sofredor, no auge da sua miséria, apela para um rico fazendeiro, morador naquela zona; pede-lhe serviço para poder sobreviver. Sem tardança, o velho pecador se prontifica a ajudar o jovem pecador, mandando guardar uma manada de porcos que ele tem na sua fazenda. Dá serviço ao jovem sofredor – mas não lhe dá alimento. Assim é que todo egoísta trata outro egoísta.

O jovem acabou pastor de porcos imundos. E, quando ouvia o ruidoso crepitar das vagens de alfarroba entre os dentes dos suínos; quando ele via como os animais, depois de encherem a barriga, se deitavam gostosamente no chiqueiro e dormiam tranqüilamente, enquanto o jovem, de estomago vazio, sentia o desejo de ser animal também para poder ser estupidamente feliz como eles – então despertou nele algo misterioso...
“Desejava encher sua barriga” (implere ventrem suum), não saciar-se, que é impossível ao racional, mas pelo menos “encher a barriga”, como os porcos, já que outra coisa não era possível. Desejava, pelo menos, esquecer sua insatisfação, já que não se podia satisfazer; tentava enganar, narcotizar, com gozos materiais os seus anseios espirituais.
Mas, diz o texto, ninguém lhe dava essa satisfação animalesca. Alimentos materiais não saciam fome espiritual.
Ali, no meio duma manada de animais satisfeitos, desceu a insatisfação do jovem ao mais profundo nadir da infelicidade.
E foi então que o máximo do sofrimento o levou ao início da redenção. “Ele entrou em si”, diz o texto.

Caiu em si, escrevem os maus tradutores, como se alguém pudesse cair pra cima. Entrou em si, diz o autor sacro.
Saiu das periferias do ego pecador e sofredor – entrou no centro do Eu redentor. Aconteceu ao filho pródigo a maior coisa que pode acontecer ao homem: a auto-compreensão. Que sou eu?...
E toda auto-compreensão transborda em auto-realização.
Que sou eu? Sou eu realmente um pastor de porcos? Não! Isto é a triste profissão do meu ego humano – mas não a gloriosa vocação do meu Eu divino...
Que sou eu?
Eu sou filho daquele pai bondoso. Não sou o que pareço ser externamente – sou e sempre serei o que sou internamente. Eu pareço ser escravo de um tirano egoísta, que me reduziu a pastor de porcos – mas eu sou filho livre de alguém que continua a ser meu pai.
Depois desse ingresso no Eu, e esse egresso do seu ego, veio o regresso ao Pai.
A auto-compreensão transborda infalivelmente em auto-realização.

Dizem certos tradutores que o jovem se “arrependeu”; outros chegam ao auge da absurdidade afirmando que fez “penitência”. Mas o texto inspirado do Evangelho só conhece a palavra “converteu-se” ou “transmentalizou-se”. Ultrapassou a sua velha mentalidade ego e entrou na nova consciência do Eu.
O jovem aparentemente, regressou para donde viera; na realidade, porém, esse regresso foi um super-gresso; o ponto da sua volta não coincidiu com o ponto de sua partida; não fechou simplesmente um círculo, abriu uma grande espiral, cujo termo de chegada está imensamente acima do termo de partida; o regresso superou o egresso, porque entre este e aquele aconteceu um ingresso. Entre a partida e a chegada houve uma gigantesca evolução – a jornada cósmica que vai da culpa através do sofrimento até a redenção.

Para celebrar esse grande acontecimento – a autocompreensão e auto-realização de um homem – o Evangelho recorre a tudo quanto possa simbolizar suprema alegria e solenidade: abraços, beijos, anel precioso, deslumbrante vestuário, lauto festim, músicas e bailados. É que a realização de um único homem é um fenômeno mais grandioso que todos os astros e galáxias do Universo. Deus creou todas as grandezas do cosmos – mas um único homem plenamente realizado é um Universo de creatividade acima de todas as creaturidades...

Quando se estava celebrando essa grande harmonia, aparece uma aguda dissonância: o filho mais velho, que estagnara na sua evolução e continuara a marcar passo na inexperiência, revelou-se incapaz de compreender a linha ascensional evolutiva de seu irmão, que culminou em suprema verticalidade. Nem aceita a palavra “teu irmão”, mas substitui-a por “teu filho”. De fato, o jovem realizado não era mais irmão dele; não havia nenhuma afinidade espiritual entre eles; ele era apenas “teu filho”, um filho de Deus, sem afinidade com outros filhos de Deus. O filho mais velho se queixa de nunca ter sido recompensado por sua obediência de muitos anos, ao passo que o outro, auto-realizado, nada sabe de recompensa, de espírito mercenário. Quem encontrou seu verdadeiro ser nada mais sabe do ilusório ter. Quem realizou o seu ser só conhece amor, e nada sabe de recompensa.

O poema do filho pródigo marca o zênite da genialidade do Nazareno, quando considerado à luz do drama cósmico da auto-realização do homem e da evolução multimilenar da humanidade.
O filho mais velho representa um ser humano que, longe de atingir as alturas da individualidade do Eu divino, nem sequer despertara para a personalidade do seu ego humano. E quem não tem consciência do seu ego não é possuidor de nada, como os seres da natureza, que nada sabem de posse ou possessividade.
Por isso, diz muito bem o Pai, que simboliza Deus. “Tudo que é meu é teu”. Tudo que é de Deus é também do mundo infra-humano – mineral, vegetal, animal – mas esse mundo nada sabe de “meu”. O infra-ego não possui nada, nem sequer um “cabrito”. A consciência do “meu” é um corolário do pequeno “eu” personal, ou ego.

O filho mais novo havia chegado à ego-consciência personal e a tinha superado, atingindo as alturas da Eu-consciência cósmica.
O hino místico “Exultet”, que se canta anualmente na véspera ou manhã da Páscoa, exclama: “O Felix culpa! O vere necessarium Adae peccatum quod talem et tantum meruisti Redemptorem!” (Ó culpa feliz! Ó pecado de Adão realmente necessário, que tal e tão grande Redentor mereceste).
Poderá haver culpa feliz? Haverá pecado necessário?
Em face da teologia analítica, isto é blasfemo – mas à luz da visão da mística intuitiva, isto é sublime. Culpa e pecado simbolizam o estágio evolutivo do homem através do ego em demanda do Eu. A nossa humanidade da ego-personalidade já está no plano horizontal da “culpa feliz” e do “pecado necessário”; falta-lhe superar esse plano e atingir a plenitude vertical da sua redenção.

Após o sub-ego, a Kundalini, enrolada e dormente, acordará como ego rastejante no plano horizontal, “comendo do pó da terra” – no super-ego, ou Eu, Kundalini se ergue à plenitude vertical da sua auto-realização.
A história do filho pródigo encerra uma metafísica de infinita profundidade e uma mística de inaudita sublimidade.