quarta-feira, 29 de outubro de 2008

“VÓS SOIS A LUZ DO MUNDO”

O que a ciência analítica de Einstein provou no século XX, isto já sabia a sapiência intuitiva de Moisés quinze séculos antes de Cristo. Logo no princípio do Gênese, diz Moisés que, no primeiro yom (período), Deus creou a luz, não a luz do sol e das estrelas, que, segundo ele, apareceram só no quarto período. Moisés fala da luz cósmica, invisível, da qual nasceram as luzes focalizadas no sol, nas estrelas e nas outras unidades siderais.
Seja nas páginas do Gênesis, escritas cerca de 3.500 anos antes do nosso tempo, seja em pleno século XX, na era atômica, os sapientes e os cientes afirmam que a luz é o alfa e o ômega de todas as coisas finitas – o alfa, porque tudo é lucigênito, o ômega, porque tudo é lucificável.
O Cristo cósmico afirma que ele é a luz do cosmos, não no sentido físico, mas na visão metafísica; “antes que o mundo existisse, eu sou”, diz ele na sua oração de despedida, na santa ceia.
E afirma que todo homem é essencialmente essa mesma luz cósmica, embora em nós essa luz esteja ainda oculta debaixo do alqueire da nossa opaca egoidade, e nele já estava manifesta, brilhando no alto do candelabro da sua consciência espiritual. Quando ele diz: “Eu e o Pai somos um, o Pai está em mim”, logo acrescenta: “O Pai também está em vós”; e quando afirma: “Eu sou a luz do mundo”, logo completa: “vós também sois a luz do mundo”.
Certos teólogos, ainda emaranhados na ilusão do seu exoterismo, não admitem que nós sejamos da mesma substância essencial que o Cristo, da substância divina do Pai; querem que o Cristo seja “gerado”, nascido da consubstancialidade homogênea da Divindade, e que nós sejamos “feitos” da diversidade heterogênea, não nascidos de Deus, mas manufaturados por ele.
Mas essa teologia contradiz frontalmente ao Evangelho e às palavras explícitas do Cristo. Contradiz até às palavras que Paulo de Tarso disse aos filósofos atenienses, nas alturas do Areópago: “Nós somos de estirpe divina”.
Não há nenhum panteísmo blasfemo nessa concepção da substancialidade crística de todos os homens. A homogeneidade consubstancial não se refere à nossa existência finita, mas tão somente à nossa essência infinita. Em nossa finitude hominal todos nós somos infinitamente inferiores à Divindade, e, quando caímos em erros e pecados, não é Deus que erra ou peca, é apenas o nosso pobre ego humano, que não é igual a Deus.
A nossa tarefa, aqui na terra, consiste precisamente em fazer do nosso ego humano existencial uma perfeita imagem e semelhança do nosso Eu divino essencial. Assim como o Eu divino do Cristo fez do ego humano do seu Jesus um perfeito veículo do seu Cristo cósmico, assim deve todo Eu crístico do homem transformar o seu ego humano num perfeito veículo e agente dócil do seu Verbo, que se fez carne em cada um de nós.
“Toda alma humana – escreve Tertuliano no segundo século – é crística por sua própria natureza”.
A nossa missão aqui na terra é revelar através do prisma da nossa humanidade a cristicidade da luz divina.
A nossa personalidade humana pode servir de impedimento opaco e opor-se à penetração da luz divina – mas pode também servir de prisma triangular para difundir beneficamente a luz incolor do Cristo na maravilhosa faixa multicor da nossa humanidade. O nosso prisma triangular – alma, mente e corpo – pode fazer da luz incolor do Verbo uma epopéia de belezas, em vez de funcionar como interceptor opaco da luz divina.
Difusor transparente de belezas multicores – e não interceptor opaco da luz divina.

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Onde não há luz não há vida, beleza, alegria.
Se Deus, segundo Aristóteles, é actus purus, pura atividade ou vibração espiritual, então a creatura deve ser tanto mais divina quanto mais se aproximar do actus purus.
O profano entende por atividade “movimento”, correria, agitação. Na verdade, porém, a atividade é precisamente o contrário do movimento. Uma roda em movimento giratório que recebe sua força do eixo, tem toda a força no centro, ao passo que tanto menor é a força quanto mais distante do eixo central e quanto mais próximo da periferia. Força e movimento estão em sentido oposto. Força é atividade – movimento é passividade. A força , o movimento recebe. Luz é o máximo de vibração, atividade.
Quando o homem atinge o zênite da sua força e atividade, torna-se cada vez mais tranqüilo, mais quieto, mais centralizado, e por isto mais eficiente. Eficiência é força, e não movimento; 10% de força vale mais que 90% de movimento. A luz é a maior força do Universo, embora pareça ser a coisa mais fraca. A essência da dinamite, das águas, da eletricidade, do vento, é a luz. Nestes últimos anos a nossa ciência e técnica descobriram que o último reduto da força é o átomo, ou melhor, o núcleo atômico, que se chama próton.
Próton é a palavra grega para “primeiro”; a primeira e a maior das forças é o próton, que é a alma invisível do átomo e, portanto, de todas as coisas da natureza.
Antigamente, força eram músculos de animais, camelos, elefantes, bois, búfalos, cavalos, etc. Força era também a água, o vento; mais tarde força era vapor d’água, que acionava locomotivas. Desde o século passado, força é eletricidade, que parecia ser fraqueza.
Finalmente, força é esta aparente imobilidade invisível do átomo e, ultimamente, essa entidade que nunca ninguém viu, do núcleo atômico, o próton. Hoje, o homem se convenceu que força é aparente fraqueza e imobilidade.

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No microcosmo humano, o próton ou núcleo é o seu Eu, que é a fonte de todas as suas forças e o centro imóvel de todas as periferias móveis; é o ponto fixo; é o átomo indivisível, o “indivíduo”, indiviso em si e indiviso, não dividido, da alma do Universo.
Quando o Nazareno disse que o homem é luz cósmica como ele mesmo, enunciou o ponto culminante de toda sapiência dos séculos e milênios.
Teilhard de Chardin falou do “alfa e ômega” do homem; escreveu um livro sobre O Fenômeno Humano, que vai da hilosfera através da biosfera, e hoje chegou até à noosfera, em demanda da logosfera, que é o Logos, o Verbo, o Cristo cósmico, a Luz do mundo.
Mas, através de toda essa jornada multimilenar – através da hyle (matéria), da bios (vida), do noos (inteligência) rumo ao Logos (razão), é o homem guiado, luci-guiado, consciente ou inconscientemente, pela luz cósmica do seu Cristo interno.
Dizem e escrevem certos ignorantes, sobretudo os ignorantes eruditos, que o homem veio da matéria, do animal – e ignoram a sua própria ignorância. Pois, segundo a mais comezinha lógica e matemática, o menos não pode produzir o mais, o inferior não produz o superior. Esses homens confundem fonte com canal, causa com condição. Possivelmente, o corpo humano tenha fluído através de veículos materiais, mas, em hipótese alguma, veio desses canais; o homem veio da mesma e única fonte infinita da qual derivaram todas as águas das coisas finitas. Podem os finitos fluir através de outros finitos, mas não podem vir de outros finitos. Podem os finitos funcionar como potencialidades (canais), mas não podem ser potência (fonte).
Assim como todos os 92 elementos da química, dos quais vêm todas as coisas, vieram da luz, como a ciência provou – assim vieram todas as coisas finitas do Infinito, como a sapiência sabe e intui desde o princípio da humanidade.
A luz da essência humana veio da Luz da Essência Divina. O próprio Cristo, que é a luz do mundo já plenamente realizada, afirma que também ele veio da Luz Infinita que ele chama o Pai: “Eu e o Pai somos um, mas o Pai é maior do que eu”. Ele o Cristo cósmico, é o canal-mestre, que veio da fonte do Pai; e nós somos como que canais secundários ligados ao canal-mestre dele. Por isso diz ele: “Ninguém vai ao Pai a não ser por mim; eu sou o caminho, a verdade e a vida, quem me segue não anda em trevas, mas tem a luz da vida”.

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Onde não há luz, como já dissemos, não há vida, beleza, alegria. Sem a luz tudo é morto, feio, triste.
O que os profanos chamam vida, beleza e alegria é como luz pintada numa tela de museu, mas não é luz verdadeira e autêntica. Todos sabem que a mais perfeita luz pintada não ilumina nem aquece; é uma pseudo-luz ilusória, fictícia. Um incêndio na tela não fornece luz nem calor como um simples fósforo. A diferença entre luz natural e luz artificial, entre luz verdadeira e luz pintada, não é questão de quantidade, mas de qualidade.
Com a pequena chama de um fósforo podemos incendiar uma floresta inteira, e iniciar a iluminação da maior cidade do mundo – mas com uma luz artificial pintada não podemos iluminar uma sala, nem sequer aquecer um cafezinho.
Quando a pequena chama de um fósforo encontra combustível suficiente, inicia uma “reação em cadeia” de caráter molecular, e enquanto houver combustível, o fogo não se apaga.
O mesmo se dá no mundo metafísico, onde a “reação em cadeia” é sem limites: basta que apareça um homem-luz, um homem-fogo, e a iluminação e o incêndio metafísico se propagam irresistivelmente. Há quase dois mil anos que apareceu um homem dessa natureza, de luz e fogo, que disse: “Eu sou a luz do mundo”, “Eu vim para lançar fogo à terra, e que quero eu senão que arda?” – e a quase dois mil anos muitos homens foram iluminados e ignificados por esse gigantesco incêndio.
Basta que alguém se torne combustível idôneo, para ser iluminado e incendiado por essa gigantesca conflagração Cristo-cósmica. Dá-se então uma “reação em cadeia”, um contágio de luz e fogo, quando um homem crea em si a necessária receptividade luci-ígnea.

* * *

O profano está como que na escuridão ou sombra espessa, porque se acha por detrás de uma muralha opaca, que se ergue entre ele e a luz; vive nessa escuridão e nada sabe da luz.
O místico chegou a saber que há luz do outro lado da muralha opaca, e, desejoso da luz, resolveu derrubar essa muralha, que é o mundo material e do qual faz parte o seu próprio corpo e todas as coisas do ego.
O homem cósmico, porém, descobriu uma terceira alternativa: não está por detrás de nenhuma muralha opaca, nem derrubou esse muro, mas, de tão iluminado e lucificado, tornou esse muro transparente. O homem cósmico despertou em si tamanho poder de sabedoria que conseguiu diafanizar a muralha divisória entre si e a luz; fez da muralha opaca um prisma cristalino, através do qual penetra a luz incolor e aparece nas maravilhas das cores do arco-íris, embelezando todas as coisas da sua vida. Mas, para lucificar a muralha divisória das coisas mundanas, deve ele mesmo ter intensificado ao máximo a sua lucificação.
A luz incolor é una.
O prisma tem três faces.
E o resultado do uno e do três são as sete cores do arco-íris.
A alma, a mente e o corpo – esse prisma triangular – quando se tornam perfeitamente transparentes, podem transformar a luz branca do Cristo na maravilha multicor – como aconteceu com Jesus de Nazaré, através do qual se manifestou o Cristo cósmico – e a personalidade do Nazareno apareceu “cheia de graça e de verdade”.
Quando o Verbo do nosso Eu crístico se encarna na pessoa humana pela geração e pelo nascimento, pode o ego humano eclipsar a luz do Eu divino – mas pode também fazer do ego a mais bela creatura de Deus.
Quando a personalidade humana do Nazareno foi penetrada pela luz do mundo, ficou esta terra embelezada pelos esplendores de Jesus de Nazaré, “de cuja plenitude todos nós recebemos, graça sobre graça”.

domingo, 26 de outubro de 2008

“VÓS SOIS O SAL DA TERRA”

O sal é, por via de regra, identificado com o nosso sal de cozinha, cloreto de sódio, que usamos para dois fins: para dar sabor aos alimentos, e para preservá-los da putrefação. Neste sentido popular, a idéia do sal tem ótima aplicação ao mundo espiritual.
O discípulo do Cristo tem de fazer, na zona espiritual o que o sal faz no mundo material: dar sabor à vida – e preservá-la da putrefação.
Sem o condimento do sal, os alimentos sai insípidos, ou insulsos – e não é isto mesmo que acontece no mundo superior? O profano, que nada sabe do condimento da espiritualidade, leva uma vida insípida; mas, como ele ignora a sua própria insipidez, nem jamais saboreou alimento espiritual, tolera os seus alimentos cotidianos insulsos. E, quando a insipidez se lhe torna insuportável, procura esquecê-la por algum tempo, narcotizando-se com toda a espécie de anestésicos e analgésicos, como são geralmente dinheiro, sexo e divertimentos. Praticamente, nenhum profano sabe de outra coisa que não se possa reduzir de algum modo a essa trindade egóica. Pratica esses escapismos temporários com a intenção de fugir da insipidez da vida; mas, depois de voltar a si, enfrenta novamente, com redobrada violência, a mesma insipidez. Na juventude é sobretudo o escapismo para a zona do sexo, da luxúria em todas as suas variantes. Para isto, não necessita ele de muito dinheiro; basta ter um corpo são e normal, e o caminho para essa espécie de narcótico está aberto.
Na idade madura, é, sobretudo o dinheiro, em todas as suas formas, que serve para derivativo: indústria, comércio, negócios, especulações cambiais, etc.
E, em todas as idades servem os divertimentos e as diversões, esportes, viagens, que hoje em dia, têm aspectos tão variados que parecem até satisfazer os mais avançados anseios do homem profano.
Alguns sabem sublimar o seu alimento por meio de condimentos mais sutis, como sejam a ciência e a arte. Sobretudo a arte serve, não raro, de traço de união entre a física e a metafísica.
Para o homem de sorte, esses derivativos substituem, muitas vezes, a ignota zona da metafísica e da mística. Mas, quando os revezes da fortuna e o estado de saúde privam o homem de sentir plena satisfação nesses ídolos do ego – então se acha ele numa dolorosa encruzilhada da sua existência. O sofrimento pode ser uma espada de dois gumes: pode ser o início da sublimação da vida humana – e pode ser também o início do seu total desespero. Se o homem, durante meio século de vida totalmente profana, vivida na dimensão do dinheiro, do sexo e dos divertimentos, se vir subitamente privado desses seus ídolos tradicionais, dificilmente enveredará, de improviso, pelo caminho da sublimação espiritual; acabará, provavelmente, no desânimo, no desespero, possivelmente no manicômio, no hospital, quiçá no suicídio – em todo caso num inferno em plena vida.
É sumamente perigoso, mesmo em estado de plena saúde e prosperidade, firmar-se com ambos os pés unicamente na base da física, sem nenhum apoio na metafísica.
Somente homens de natureza medíocre encontram plena satisfação, como eles pensam, na zona da física sem anseios metafísicos.
Caracteres dotados de maior voltagem vital, fazem a experiência seguinte: quanto mais favoráveis são as circunstâncias externas da sua vida, maior e mais intensa é a nostalgia da substância interna. Não é necessário nenhum terremoto de fora para essas pessoas sentirem a sua inquietude metafísica; parece até que a própria plenitude física lhes faz sentir mais conscientemente a sua vacuidade metafísica. A harmonia da sua vida material, emocional e social lhes faz sentir ainda mais a desarmonia do seu mundo espiritual.
Neste ambiente, deve Santo Agostinho ter escrito as tão citadas palavras: “Fizeste-nos para ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração até que encontre quietação em ti”.
Poucos homens devem ter levado uma vida externa tão feliz como esse genial africano; mais de meio século de prosperidade, de saúde, de inteligência brilhante, de glórias, de admiração e esse homem, nadando num oceano de prosperidade humana, anseia por uma felicidade longínqua, desconhecida, porém, intensamente farejada – e sofrida.
Outro homem, Leão Tolstoi, foi outro felizardo profundamente insatisfeito: fazendeiro riquíssimo, dono de uma fortuna imensa, pai de nove filhos, feliz como esposo e pai, como escritor, poeta e artista, alvo de imensa admiração do mundo – sente-se ele tão infeliz na sua felicidade, que resolve fugir da maldição da sua prosperidade, como ele mesmo diz. Desaparece... mas a polícia o reconduz para casa e o obriga a viver, por algum tempo, no meio da família.
Tolstoi, porém, não tolera a sua chamada felicidade; numa fria noite de inverno, quase aos oitenta anos de vida, foge pela segunda vez, desta vez em companhia da filha mais nova Alexandra, que parece ter participado da nostalgia mística do pai. Apenas com a roupa do corpo, adoece no trem e morre numa pequena estação ferroviária em plena mata; antes de dar o último suspiro, transmite à filha a sua última vontade, proibindo qualquer discurso, música ou pompa ao pé do seu túmulo.
Nem sempre, dinheiro, sexo e divertimentos roubam ao homem a visão duma felicidade transcendente; desse roubo só são vítimas os caracteres medíocres, os homens-minhocas, satisfeitos com o seu húmus no fundo da terra, e incapazes de invejarem os vôos das águias nas luminosas alturas do céu.
Quando o Mestre diz aos seus discípulos que eles são o sal da terra, faz alusão a esse condimento de espiritualidade, destinado a tornar saborosas todas as materialidades da vida terrestre. Não lhes recomenda comer sal puro, mas sim condimentar todos os alimentos da vida física com o sabor da metafísica e da mística, que ele designa geralmente com a palavra o “Reino de Deus”.
Mas, o Nazareno faz aos seus discípulos uma advertência muito séria: se o próprio sal da espiritualidade perder a sua salinidade, o seu poder de salgar, fica inútil e para nada mais serve senão para ser lançado fora e pisado aos pés dos transeuntes.
Quando o homem perde a consciência da sua espiritualidade, a consciência do seu Eu divino, como poderia ele ainda espiritualizar a sua vida material? Como poderia o Eu divino condimentar as profanidades do ego humano, se ele perder a consciência de que “eu e o Pai somos um”?
E como conseguirá o homem preservar esta consciência se, no meio deste dilúvio diário de profanidades e profanações, não se recolher muitas vezes à sacralidade da interiorização, da sintonização Crística?
Esse homem perdeu a sua razão de ser, abriu falência. É lançado fora, mesmo na vida presente e pisado aos pés. Pode ser que os seus companheiros de profanidade o estimem e respeitem aparentemente; mas, o que eles respeitam é antes o que esse homem tem, não o que ele é; respeitam algo que ele possui, dinheiro, sua posição social, seu prestígio – não respeitam o alguém que ele devia ser, mas não é. Em última análise só se pode respeitar um valor e não uma coisa. Mas o homem que se desvaloriza e coisifica deixou de ser alguém e se tornou apenas algo.
O sal, além de dar sabor aos alimentos, também os preserva da putrefação. Mas quem é putrefato não pode salvar outro da putrefação, da corrupção.
Hoje em dia, quem não anda na moda não é moderno, e, como o homem profano, acima de tudo, quer ser moderno, tem de acompanhar a moda, por mais putrefata que ela seja. A moda, porém, é quase sempre não ter modos, ser escravo da opinião pública, não se guiar pela consciência própria, mas obedecer a convenções alheias. Não ser moderno exige grande firmeza de caráter e independência de espírito.
Hoje em dia, é quase impossível ter consciência própria. A publicidade social e comercial é tão requintadamente sutil e contagiante, que nenhum homem medíocre resiste ao impacto da propaganda; somente uns poucos monólitos conseguem erguer-se, incólumes, do meio do vasto areal da escravidão universal da sociedade.
Para não ser moderno é necessário ser herói.
Para ser alguém é preciso ter coragem de renunciar a algo – e muitas vezes esse algo é quase tudo o que a sociedade preza.
Para poder funcionar como sal da sociedade, para lhe dar sabor e preservá-la da corrupção, é necessário, não raro, parecer anti-social, não ser um passivo refletor da opinião pública, mas sim um ativo diretor dela.
O homem-sal tem de ter a coragem de ser antipático à sociedade – por amor à sociedade, tem de contrariá-la, para salvá-la.
O homem espiritual se guia por princípios – o homem material só é dominado por fins.
O homem fraco é derrotado por fins egoísticos – o homem forte é orientado por princípios espirituais.
Por isto, o homem de princípios não terá fim, é eterno, porque está sempre no princípio da sua vida e carreira.
Os princípios preservam o homem, como o sal.
Os fins corrompem o homem, como se corrompem os alimentos sem sal.
“Vós sois o sal da terra”...

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

EPÍLOGO

A Mística das Beatitudes resume, em duas palavras, o que o Mestre disse depois de proferir essas oito proclamações, que representam a plataforma do Reino de Deus e o auto-retrato de sua própria alma:
“Vós sois o sal da terra”.
“Vós sois a luz do mundo”.
Estas duas alegorias formam como que o alicerce, e ao mesmo tempo a pedra de fecho do majestoso santuário sustentado pelas oito colunas das bem-aventuranças. Esse octógono tem o seu fundamento nas alturas do céu, como a cidade santa de Deus, que, segundo o Apocalipse, desce de cima para baixo; tem as raízes no céu, e se ramifica, floresce e frutifica na terra.
Quando algum homem já é sal e luz, realiza com espontânea facilidade o conteúdo das Beatitudes, que aos profanos e inexperientes podem parecer absurdas ou extremamente difíceis.
O sal dá sabor a todos os alimentos – assim como a experiência espiritual é um misterioso condimento que permeia de sapiência todas as insipiências, e dá sapidez divina a qualquer insipidez da vida humana. O sal, se fosse tomado em estado puro, não seria agradável, mas, quando usado discretamente como aditamento, dá sabor a tudo. É a espiritualidade sensata e dosada que transforma todas as materialidades e preserva-as, ao mesmo tempo, da corrupção.
A luz, essa realidade mais sutil e invisível do Universo, dá vida, alegria e beleza a todas as creaturas da terra. Sem ela, o Universo não seria um cosmos, mas um caos de morte e treva.
Estas duas alegorias, sal e luz, sabor e vida, são a quintessência da filosofia e poesia do Nazareno. Nelas se aliam a metafísica da verdade e a mística da beleza. Bem se poderiam aplicar a estas alegorias as palavras de Mahatma Gandhi: “A verdade é dura como o diamante – e delicada como flor de pessegueiro”.
Por esta razão, acrescentamos às Beatitudes este remate metafísico-místico, coroa e alicerce do santuário da sabedoria cósmica do Nazareno.

8 – BEM-AVENTURADOS OS QUE SOFREM PERSEGUIÇÃO POR CAUSA DA JUSTIÇA, PORQUE DELES É O REINO DOS CÉUS

O Mestre amplifica esta bem-aventurança, acrescentando: “Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e caluniosamente disserem de vós todo mal, por minha causa; alegrai-vos e exultai, porque grande é a vossa recompensa nos céus”.
Quem lê esta bem-aventurança, e sobretudo o seu acréscimo, do ponto de vista do ego profano, não pode furtar-se à impressão ingrata de que a mensagem do Cristo é visceralmente sadista e escapista. Imagine-se: felizes são os que sofrem perseguição e difamação de toda a espécie porque deles é o Reino dos Céus, aqui e agora, e não apenas no futuro.
Sendo que o Reino dos Céus está dentro do homem, no seu Eu divino consciente e realizado, parece que a auto-realização anda necessariamente incompatível com a realização do ego. Parece que o homem não pode ser espiritualmente bom sem ser ao mesmo tempo mártir e vítima da sua própria espiritualidade. E, para justificar este conceito, vai através de toda a literatura de quase dois mil anos a idéia de que Jesus foi o rei dos sofredores, o homem das dores, o mártir por excelência. Fomos educados na idéia de que não se pode ser feliz no Aquém sem ser infeliz no Além, ou vice-versa; que os que são infelizes na terra serão necessariamente felizes no Céu.
É verdade que Jesus foi o rei dos sofredores?
Os seus sofrimentos, em 33 anos de existência terrestre, não abrangem quinze horas, desde a quinta-feira à noite, até a sexta-feira pelas três horas da tarde. Os seus sofrimentos físicos talvez não cheguem a três horas, desde o meio-dia até às três horas da sexta-feira, quando expirou. E todos estes sofrimentos foram livremente aceitos, antecipadamente: “Não devia então o Cristo sofrer tudo isto para assim entrar em sua glória?”
Será que já existiu sobre a face da terra um homem que vivesse 33 anos e sofresse tão pouco?
Mas... os sofrimentos morais e psíquicos de Jesus? A incompreensão do povo e dos seus próprios discípulos? A traição de Judas, a negação de Pedro e o abandono dos seus discípulos?
E não sabia o Cristo de tudo isto na encarnação? Não sabia ele que a encarnação era um mergulho nas trevas espessas do mundo material e hominal?
Quando se sofre livremente, por amor a um grande ideal, o sofrimento perde o seu mais acervo amargor; realmente amargo é somente o sofrimento quando sofrido estupidamente, à toa, sem se saber porque, sem nenhuma finalidade superior.
Todo sofrimento, físico ou moral, realizado à luz de uma grande missão, de um ideal sublime, é uma doce amargura, é um “jugo suave” e um “peso leve”.
Foi nesse sentido que Jesus proclamou felizes os que sofrem perseguição por causa da verdade, precisamente porque deles é o Reino dos Céus que está no interior de todo homem. Não diz “será”, mas “é” o Reino dos Céus. O Reino dos Céus não jaz em nenhuma região distante e futura; o Reino dos Céus não é objeto de uma aquisição após morte. O Reino dos Céus é a íntima natureza de todo homem. A presença deste Reino é um fato, uma realidade no interior de cada homem. A diferença não está em que o Reino de Deus esteja presente em alguns, e ausente de outros – a diferença está unicamente no fato de terem alguns a consciência da presença desse Reino, e outros viverem na inconsciência dessa presença. para alguns homens o Reino de Deus é ainda “uma luz debaixo do alqueire”, para outros já é “uma luz no alto do candelabro” da sua consciência espiritual.
Os que ainda não conscientizaram a presença da luz, do Reino dentro de si, sofrem como se essa luz, esse Reino, estivessem ausentes, como se tudo fosse treva espessa.
A conscientização da presença da luz do Reino depende da reta ou falsa função do livre arbítrio de cada um.
É experiência geral que o ego, quando está repleto de gozos e satisfações, dificilmente se interessa pelas coisas do seu Eu espiritual. O desejo de algo espiritual só desperta no homem quando lhe faltam os objetos do ego. O homem-ego só conhece os objetivos da vida, mas ignora a sua razão de ser. Enquanto os objetivos da vida estão presentes em abundância, o homem profano procura a sua satisfação e felicidade nesses objetos, e dificilmente descobre a sua razão de ser, que tem que ver com o seu sujeito profundo, com o seu Eu interno.
A parábola dos convidados à festa nupcial, do Evangelho, é uma ilustração típica dessa atitude: os homens profanos, convidados em primeiro lugar,não compareceram à festa nupcial do Reino de Deus, porque um comprou um sítio e tinha de vê-lo e cultivá-lo; outro comprou cinco juntas de bois e tinha de experimentá-los; o terceiro havia casado e tinha festa e baile em casa. Todos eles, de tão satisfeitos com os objetos da vida, não sentiam a fome de uma razão de ser superior. Os seus teres e fazeres eclipsaram totalmente o seu ser. Não atingiram a plenitude espiritual por causa das suas pseudo-plenitudes materiais, que eram as suas grandes vacuidades.
Então, convidou o senhor da festa nupcial, os pobres, os aleijados, os surdos, todos os que não estavam saturados com os objetivos da vida, e estes compreenderam a razão de ser da sua existência superior, e compareceram à solenidade do Reino de Deus, pelo autoconhecimento e pela auto-realização.
A transição da ego-consciência para a Cristo-consciência, implica, quase sempre, em sofrimento, em “caminho estreito e porta apertada”; mas, uma vez conseguida a Cristo-consciência, a vida do homem espiritual pode tornar-se um “jugo suave” e um “peso leve”.
Para os realizandos, a espiritualidade é um sofrimento.
Para os realizados, é um gozo.
A infeliz satisfação do profano deve passar pela feliz insatisfação do místico – a fim de poder, um dia, culminar na feliz satisfação do homem cósmico.
Todos os Mestres da vida espiritual falam a homens profanos, espiritualmente analfabetos, como é o grosso da humanidade. E por isto insistem na necessidade da renúncia, do sacrifício, da abnegação.
Insistem na transição do homem profano para o homem místico – e pouco se referem ao homem cósmico. A pedagogia tem de preceder à metafísica. Se os Mestres mostrassem a compatibilidade da felicidade espiritual com os gozos externos, que aconteceria? A imensa maioria dos profanos se julgaria pertencente à elite dos homens cósmicos; substituiriam a libertação real por uma pseudo libertação ilusória, gozando os prazeres da vida, na ilusão de serem homens cósmicos, de terem já superado o doloroso período ascético-místico.
O profano, sobretudo, quando ignorante, e ainda por cima arrogante, facilmente se convence de que o seu primitivismo espiritual é perfeição e que renúncia, sacrifício, ascese são estágios superados.
O mais difícil dos doentes é aquele que considera como saúde a sua própria enfermidade. Os grandes Mestres sabiam disto, e por isto insistem grandemente na renúncia e no sacrifício: “Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo”. Só depois de renunciar corajosamente a tudo, é que o homem pode possuir tudo sem ser possuído de nada. Mas estes poucos – onde estão?
Albert Schweitzer escreve: “O cristianismo é uma afirmação do mundo que passou pela negação do mundo”.
E Mahatma Gandhi diz: “Homem, renuncia a tudo, entrega tudo a Deus – e depois recebe-o de volta, purificado, das mãos de Deus”.
O homem-ego é incrivelmente insincero consigo mesmo; a expressão bíblica “omnis homo mendax” (todo homem é mentiroso) é pura verdade: o homem tem a inestirpável mania de se iludir a si mesmo, de se julgar auto-realizado, quando nem começou ainda o abc da sua iniciação. Em vez de soletrar o abc e a tabuada na escola primária, procura matricular-se na universidade do espírito.
Em face desse pendor de insinceridade, de mendacidade, de autodecepção, devem os grandes Mestres falar como falam, chamar felizes os que sofrem perseguição e difamação por causa da verdade. Só assim podem eles levar os analfabetos do espírito a aprenderem os rudimentos da espiritualidade.
Ninguém pode passar do primeiro ao terceiro, sem passar pelo segundo. Ninguém pode passar ao mundo da consciência Cristo-cósmica, sem ter passado pelo mundo da mística ascética.
Segundo todos os Mestres, o caminho ascensional passa pelos estágios da purificação, da iluminação e da união. Se o profano impuro não se purificar das suas impurezas, não pode ser iluminado pela mística, nem unido pela consciência cósmica.
É esta a lógica retilínea da libertação pela verdade.
É imensa a legião dos profanos que se julgam cósmicos – porque não passaram ainda pelo noviciado da mística.
Quanto mais severamente o homem passar por esse noviciado místico-ascético, tanto mais esperança tem ele de entrar um dia no mundo glorioso da consciência cósmica do Cristo.
“Bem-aventurados os que sofrem perseguição pela justiça, porque deles é o Reino dos Céus”.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

7 – BEM-AVENTURADOS OS PACIFICADORES, PORQUE ELES SERÃO CHAMADOS FILHOS DE DEUS

Paz...
Há quase dois mil anos que os arautos de Deus cantaram sobre o estábulo de Belém: “Paz na terra aos homens de boa vontade”.
E alguns decênios depois, em vésperas de sua morte, disse o Nazareno aos seus discípulos: “Eu vos dou a paz, eu vos deixo a minha paz; não a dou como o mundo a dá, para que minha alegria seja em vós, seja perfeita a vossa alegria, e nunca ninguém tire de vós a vossa alegria”.
Depois da sua ressurreição, Jesus saúda os seus discípulos, invariavelmente, com as palavras: “Salem aleikum”, a paz seja convosco.
Entretanto, a história do cristianismo, que nasceu sob o signo da paz, é uma história de guerras e de armistícios, mas não de paz. O armistício é uma pseudo-paz, uma trégua entre duas guerras.
O nosso ego-humano nada sabe de paz, só conhece a guerra – a guerra quente nos campos de batalha, ou então a guerra fria do armistício, nos parlamentos. Por isto dizia o Mestre: “Eu vos dou a paz, mas não a dou como o mundo a dá”, em forma precária de pseudo-paz ou armistício.
Aliás, quando o ego nasceu, como refere o Gênesis, já nasceu beligerante, lutando para os dois lados, guerreando o mundo de Deus e o Deus do mundo: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre teu descendente e o descendente dela (o Cristo); ele te esmagará a cabeça e tu armarás cilada ao calcanhar dele!”
Esta é a guerra do anticristo contra o Eu crístico.
E também entrou em guerra contra o mundo natural: “Comerás o teu pão no suor do teu rosto... num mundo coberto de espinhos e abrolhos”.
E que fez o ego da nossa personalidade até hoje senão combater Deus e a natureza? Nunca a humanidade gozou de um único ano de paz verdadeira.
Bem dizia a Bhagavad Gita: “O ego é o pior inimigo do Eu, mas o Eu é o melhor amigo do ego”.
Para que haja paz entre a personalidade humana do ego e a individualidade crística do Eu, deve o homem elevar-se à altura do Cristo, porque este não pode descer às baixadas do ego.
A paz social, nacional e internacional depende da paz individual. Enquanto o homem não fizer as pazes consigo mesmo, não pode ter paz com os outros. Todo e qualquer tratado de paz no mundo político-social acabará infalivelmente numa guerra quente, nos campos de batalha, ou então numa guerra fria nos parlamentos. As leis cósmicas são de uma lógica retilínea inexorável: nada há no mundo social que antes não tenha havido no mundo individual.
Sempre de novo, através de séculos e milênios, o homem tenta subornar as leis cósmicas, que são a ordem de Deus; sempre de novo tenta fazer o segundo antes do primeiro – e o círculo vicioso continua sem fim.
O homem tem de pacificar-se a si mesmo, antes de poder pacificar os outros.
“Bem-aventurados os pacificadores...”
A tradução habitual diz “pacíficos”. Embora esta palavra seja certa em si, hoje em dia é ela mal compreendida. Pacífico é, para o homem comum, um homem calmo, passivo, mais ou menos inerte.
Mas o termo latino é derivado de “pacem facere”, fazer a paz, bem como a expressão grega “eirene-poiuntes”, deriva de “eirene” (paz) e “poieo” (fazer). O sentido desta palavra é, sobretudo, ativo e dinâmico, e não estaticamente passivo. Feliz é o homem que faz ou realiza a paz, e não apenas vive ou vegeta pacificamente.
A paz não representa um estado de passividade e inércia, mas é uma conquista, uma vitória, altamente dinâmica. Pode o homem viver numa espécie de paz comparável à dos cemitérios, onde ninguém briga com os outros, mas todos estão em paz, por falta devida e vitalidade. Mas não é esta paz desejável; a paz verdadeira é uma bonança que segue a uma grande tempestade, é a tranqüilidade final da sapiência, depois duma longa tormenta de dúvidas e incertezas.
Durante a última guerra mundial apareceu numa revista uma ilustração satírica: um enorme campo cheio de cruzes, uma ao lado da outra, um cemitério onde tinham sido sepultados milhares de soldados mortos na guerra – alemães, franceses, russos, ingleses, italianos, etc., e a legenda dizia: “finalmente a paz mundial”.
Esses beligerantes tinham conseguido a paz, graças à perda da vida. A verdadeira paz, porém, não é uma paz por ausência de vida, mas sim uma paz pela presença e plenitude da vida, por uma vivência tão plena e exuberante que todas as desarmonias culminaram em perfeita harmonia.
Por isso dizia o Mestre: “Eu vim para que os homens tenham a vida, e a tenham em maior abundância”.
O homem-ego não tem paz, porque não está na plenitude da vida, vive apenas uma semi-vida, quiçá uma pseudo-vida, e por isto tem de brigar uns com os outros, porque está em discórdia consigo mesmo.
A solução não está numa diminuição de vida, mas sim numa intensificação de vida. Se todos os homens tivessem a plenitude da vida, a consciência do seu Eu divino, haveria paz individual e paz universal.
A verdadeira paz é a coisa mais dinâmica e realizadora do mundo; o homem autopacificador e autopacificado é o campeão das grandes realizações; ele sabe que paz é um poder silencioso, uma potência irresistível, que faz lembrar o curso silencioso dos astros pelas vias inexploradas do cosmos, ou a irresistível dinâmica da natureza, que tudo vence sem o menor ruído.
A verdadeira paz tem afinidade com o mundo da metafísica, e não da física, com o mundo da invisível realidade, e não das facticidades visíveis.
A principal tarefa do homem, aqui na terra, é estabelecer o grande tratado de paz dentro de si mesmo.
Toda a falta de paz que desgraça a pobre humanidade provém unicamente da falta de equilíbrio e harmonia entre o ego da humana personalidade e o Eu divino da sua alma. Aqui no Ocidente, é regra geral que o ego humano – material, mental e emocional – se preocupe com a vida humana sem se importar com seu destino divino. “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se sofrer prejuízo em sua própria alma?” – estas palavras do Cristo enunciam, em forma lapidar, toda a tragédia da vida humana: o homem corre freneticamente atrás dos bens deste mundo, sem se importar com o bem-estar de sua alma. Mas essa diversidade dispersiva sem a devida unidade concentrativa, tende a acabar fatalmente num caos centrífugo, que, na medicina, se chama “frustração”, que quer dizer despedaçamento ou esfacelo.
É precisamente este o programa do anti-Cristo, no episódio da tentação: “Eu te darei todos os reinos deste mundo e sua glória – prostra-te em terra e adora-me”.
O homem ocidental é um homem visceralmente centrífugo, dispersivo, fragmentado, frustrado, e por isto não tem paz, que é o apanágio da harmonia, ou seja, da unidade na diversidade.
Alguns orientais caíram no extremo oposto, abolindo a diversidade a favor da unidade, substituindo a atividade do ego pela passividade do Eu; em vez de realizarem uma mística sadia, sucumbiram a um misticismo doentio.
O homem integral, porém, não é um profano dispersivo, nem apenas um místico concentrativo.
O homem cósmico estabeleceu dentro de si o grande tratado de paz, a harmonia, o equilíbrio entre o seu centro divino e as suas periferias humanas. O homem integral é cósmico ou univérsico, porque é governado pelas mesmas leis que regem o mundo sideral, cuja atração centrípeta é perfeitamente equilibrada pela repulsão centrífuga.
A harmonia cósmica do homem, que se chama paz, é, pois, o resultado da realização do homem bipolar.
O homem que se pacificou a si mesmo por meio dessa lei de equilíbrio, irradia paz e harmonia ao redor de si, na vida doméstica, social, nacional e internacional.
O autopacificador é, mesmo inconscientemente, um alopacificador. Não há necessidade que fale muito em paz, nem que faça congressos ou comícios pró-paz – basta que ele mesmo seja um centro e uma fonte da verdadeira paz – e o mundo será pacificado por esse centro de paz dinâmica.
Paz, já o dissemos, não quer dizer passividade, inércia, inatividade. A verdadeira paz é essencialmente dinâmica, ativa, realizadora, transbordando para todos os lados, assim como o globo solar irradia luz,calor, vida e beleza por todas as latitudes e longitudes do Universo.
Os verdadeiros pacificados e pacificadores, diz o Mestre, são chamados “filhos de Deus”. Sendo Deus a infinita e a eterna paz do Universo, que outra coisa poderiam os filhos de Deus ser senão esta mesma paz?
Basta que exista algures um centro de paz dinâmica para que o mundo tenha paz.
Mas esse centro de paz dinâmica supõe autoconhecimento e auto-realização. Enquanto o homem não se conhece a si mesmo, confundindo o seu ego-humano com o seu Eu divino, não há conhecimento da verdade sobre si mesmo, e por isto não há libertação pela verdade. O primeiro passo para a realização do grande tratado de paz é a resposta à eterna pergunta: “Que sou eu?”
A resposta foi dada por todos os grandes Mestres da humanidade, sobretudo pelo Cristo, quando identificou o centro do homem com o Pai, com a Luz, com o Reino de Deus, com o Tesouro Oculto, com a Pérola Preciosa, com uma Fonte de águas vivas.
Quando o homem realiza em si esse Reino de Deus, verificará, talvez com grande surpresa, que não perdeu as coisas do seu ego humano, mas as possui mais firme e autenticamente. Quem possui o mais possui o menos – mas quem procura possuir este à custa daquele perde tanto o menos como o mais. Quem quer salvar o seu ego-humano, sacrificando o Eu divino, perderá tudo; mas quem está disposto a renunciar ao ego-humano a fim de possuir o Eu divino, verificará que, além de salvar este, salvou também aquele, uma vez que a redenção do TODO implica na redenção da parte. “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e sua harmonia – e todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo”.
Em véspera de sua morte disse o Mestre aos seus discípulos: “Eu vos dou a paz, mas não a dou como o mundo a dá”. Promete-lhes uma paz com alegria. Uma paz passiva seria uma paz com tristeza, uma vez que a atividade é alegria, e a passividade é tristeza. Esta paz que o Mestre tinha em si, mesmo em face da morte, é a paz que ele quer ver em seus discípulos, não pode ser destruída nem pela perspectiva da morte, nem pela traição, negação e fuga de seus discípulos. Esta paz, que o mundo não pode dar e que o mundo não pode tirar, é totalmente inatingível pelas circunstâncias externas. Podem, sim, as circunstâncias adversas causar sofrimento e tristezas, como aconteceu até ao Nazareno, mas não podem destruir a paz e felicidade da alma. As tempestades revolvem a superfície do mar, mas na sua profundeza continua absoluta quietação e tranqüilidade. A soberania da substância divina do homem não é atingida pelas tiranias das circunstâncias humanas. A paz de dentro persiste no meio de todas as guerras de fora.
É a grande declaração da independência espiritual no meio de todas as escravidões materiais e sociais.
A verdadeira paz dos filhos de Deus é silenciosamente dinâmica, age como se não agisse, realiza grandes coisas sem arrombar portas e sem esmagar ninguém; não atua com o estampido da explosão de uma bomba, mas com a taciturna potência com que o sol e as estrelas traçam as suas silenciosas órbitas pelo espaço infinito. A paz é silenciosamente poderosa, anonimamente irresistível, move os maiores pesos com leveza, faz com facilidade as coisas mais difíceis, abrange com suavidade todo o Universo de uma à outra extremidade, “não se houve o seu clamor nas ruas, não quebra a cana fendida, nem apaga a mecha ainda fumegante”.
O homem que encontrou a paz dentro de si mesmo, não é apressado, nervoso, agitado, porque em qualquer trecho da sua jornada, está sempre no termo e na meta de todas as suas viagens. O seu centro, como o de Deus, está em toda a parte, e a sua querência está em sua própria consciência; a meta de todos os seus métodos coincide com o Infinito, como a geometria diz das linhas paralelas.
A paz do homem autopacificado pela verdade sobre si mesmo exala uma indefinível serenidade.
Todos se sentem bem e felizes na presença desse homem que conquistou a paz depois de grandes lutas consigo mesmo. A sua serenidade dinâmica envolve e permeia todo o ambiente, como um fluido magnético, como uma aura suavemente poderosa, como um banho de luz e força. E todas as almas receptivas se sentem tão bem nesse Tabor de transfiguração que estão com vontade de dizer: Mestre, que bom que é estarmos aqui... vamos aqui armar as nossas tendas, porque aqui moram os filhos de Deus e aqui impera o Reino dos Céus...
Um único homem realmente pacificador e pacificado dentro de si mesmo, vale mais para a paz universal do mundo do que todos os pretensos fazedores de paz que não realizaram a paz dentro de si mesmos.
“Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus”.

domingo, 19 de outubro de 2008

6 – BEM-AVENTURADOS OS PUROS DE CORAÇÃO, PORQUE ELES VERÃO A DEUS

Os pobres pelo espírito são os possuidores do Reino dos Céus.
Os puros de coração são os videntes do próprio Deus.
Os possuidores do Reino dos Céus são os que, interiormente, pela atitude do seu espírito, se despossuíram dos reinos da terra, e assim abriram o caminho para o Reino dos Céus.
Os videntes de Deus são os que se libertaram, não só dos bens materiais, mas também dos bens mentais e emocionais, de todos os pensamentos e desejos incompatíveis com o mundo divino.
Quem é puro de coração é também pobre pelo espírito; quem se libertou de pensamentos e desejos egoístas, também se liberta de posses egoístas.
Pureza, na linguagem do Evangelho, é sempre desapego de tudo que não seja compatível com o mundo do espírito; não se refere apenas a desordens sexuais, que são apenas um pequeno setor dessa vastíssima impureza do ego.
Nenhum objeto em si pode escravizar o homem, quando o homem se mantém, mental e emocionalmente, livre pela atitude interior; o que escraviza não é a posse interna, e sim o apego interno. Pode um milionário estar livre daquilo que possui – e pode um pobre mendigo não estar livre daquilo que não possui, pois deseja desordenadamente possuir.
Liberdade e escravidão não são, em última análise, uma questão de ter ou não ter, mas sim um problema de não ser possuído por aquilo que se possui, ou mesmo não possui.
A pobreza pelo espírito supõe necessariamente a pureza do coração. Nenhum ato em si, nenhum fato, nenhum objeto escraviza o homem, se ele mantém no seu interior uma atitude de desapego e liberdade.
Não existem objetos moralmente bons ou maus; todos os objetos são moralmente neutros, nem bons nem maus. Somente o sujeito é que pode ser bom ou mau, pela atitude correta ou incorreta do seu livre arbítrio.
A morte priva o homem do seu corpo material – mas não o priva necessariamente do seu materialismo, que é uma atitude mental e emocional. Possivelmente, existem mais materialistas no mundo imaterial do que no mundo material. A morte não nos priva do materialismo, que é uma atitude mental do ego, e pode ser mantida indefinidamente; priva-nos apenas da matéria. O nosso livre arbítrio é responsável pelo nosso materialismo ou não materialismo, seja antes, seja depois da morte.
Quem, durante a vida terrestre, em corpo material, não superou o seu materialismo, não tem a garantia de superá-lo após a morte, no mundo imaterial.
A morte não nos faz o que a vida não nos fez.
Por isto, é importantíssimo que o homem se liberte do seu materialismo, aqui e agora. Se o homem sem corpo material, porém materialista, não se libertar desse materialismo e só idolatrar a vida da matéria, possivelmente conseguirá voltar à matéria, mas nem por isto superou o seu materialismo. Pelo contrário, reforçou o materialismo mental pela rematerialização física. E se, nessa rematerialização física, não se desmaterializar mentalmente pela espiritualização do seu livre arbítrio, poderá repetir quantas vezes quiser esse regresso à matéria sem progredir um passo, num eterno círculo vicioso.
“O homem é aquilo que ele pensa no seu coração” – estas palavras da sagrada escritura são uma grande verdade. O pensamento do homem é a locomotiva da sua vida; se os pensamentos seguem por trilhos errados, todos os vagões da vida humana seguem o mesmo caminho. E isto, sobretudo, quando são pensamentos do coração, isto é, pensamentos onerados de afetividade. Pensar é luz, querer é força; pensar afetivamente é uma luz poderosa, é um poder luminoso.
A pureza do coração visa, de preferência, ao mundo invisível dos pensamentos e dos afetos, que, mais do que outro fator qualquer, libertam ou escravizam o homem, consoante a natureza positiva ou negativa dessa atitude mental.
O que modifica o homem não são as circunstâncias, como o nascer, o viver ou o morrer; mas sim a substância do seu ser.
Nascemos, mercê de nossos pais.
Vivemos, graças aos alimentos que assimilamos.
Morreremos em conseqüência de um acidente, de uma doença ou da velhice.
Nada disto é obra nossa, da nossa substância, é obra das circunstâncias alheias ao nosso verdadeiro ser. Nosso é somente a substância do nosso ser, que se focaliza no livre arbítrio. O homem é, aqui na terra, o único ser que se pode fazer melhor ou pior do que Deus o fez. Disse alguém que Deus creou o homem menos possível, para que o homem se possa crear o mais possível. De Deus recebeu o homem a sua creaturidade creativa, e, de acordo com sua creatividade, o homem se pode tornar melhor ou pior do que Deus o fez.
O livre arbítrio é a chave do céu ou do inferno, da felicidade ou da infelicidade, da vida eterna ou da morte eterna.
Quando o livre arbítrio não está em sintonia como infinito, o homem está, por assim dizer, num ambiente opaco que não permite ver a Deus; mas, quando o homem sintoniza a sua consciência individual com a consciência universal, a sua visão se torna diáfana e transparente; ele vê Deus, não somente em Deus, mas também em todas as obras de Deus. Para ele, o mundo mineral, vegetal e animal deixou de ser algo espesso e opaco; todos os invólucros se tornaram como que transparentes e cristalinos, que lhe permitem enxergar o seu conteúdo, a sua essência interna através das existências externas. Se Deus não estivesse presente em todas as coisas – ou melhor, se Deus não fosse a íntima essência de todas as coisas – o homem só poderia imaginar a presença de Deus, só poderia sugestionar-se ilusoriamente como se Deus estivesse presente. Mas, como a onipresença de Deus é uma realidade ontológica e metafísica; como não há nada onde Deus não esteja presente, o homem, em toda a plenitude da verdade, pode ver Deus em tudo, sem nenhuma necessidade de recorrer a sugestões e camuflagens artificiais. Ver o Deus onipresente, presente em qualquer creatura – em átomos e astros, em pedras e plantas, em animais e hominais – isto é iniciar o Reino de Deus aqui na Terra.
A pureza do coração produz, pois, uma espécie de clarividência, digamos, uma teo-vidência.
Aliás, todo o progresso do mundo do espírito consiste, sempre e invariavelmente, num processo de remoção de obstáculos. A realidade espiritual nunca está ausente; nunca o homem necessita de tornar presente o que está ausente. O que o homem necessita fazer é unicamente ver o que está imperceptivelmente presente; conscientizar o que está realmente presente, mas de que o homem era inconsciente.
Quando a vidraça de uma janela está coberta de fuligem ou outra substância impenetrável, e o sol meridiano brilha do outro lado e eu estou deste lado da vidraça, o sol presente em si está ausente de mim. É invariavelmente isto que acontece ao homem profano, quando não percebe Deus, o espírito, a Realidade eterna, objetivamente presentes, mas subjetivamente ausentes.
Nos seus Solilóquios Santo Agostinho pergunta a Deus: “Onde estavas tu quando eu vivia nos meus pecados?” E Deus lhe responde: “Eu estava no meio do teu coração; estava sempre presente a ti, mas tu estavas ausente de mim”. Ao que Agostinho replica: “Como podia eu estar ausente de ti se tu estavas presente a mim? Presença não supõe dois?” E Deus lhe responde: “Eu estava sempre presente a ti, porque sou onipresente a todas as coisas; mas tu fazias de conta que eu estava ausente, para poderes viver nos teus pecados; e esta suposta ausência minha tu chamavas a minha ausência”.
Nenhum homem pecador gosta de admitir a presença de Deus, assim como as trevas não gostam da presença da luz. E o homem para justificar a sua atitude antidivina, recorre a toda a espécie de camuflagens e escamoteações, para se convencer, ou pelo menos persuadir, de que Deus não existe.
Todo o ateísmo metafísico é uma conseqüência do ateísmo moral. Somente o homem que enxerga alguma vantagem subjetiva na idéia da ausência de Deus está inclinado a negar a existência objetiva dele. O sistema da nossa filosofia, disse alguém, é quase sempre o produto do nosso modo de viver. Nenhum homem eticamente bom está em perigo de professar ateísmo.
Os puros de coração verão a Deus, porque a pureza interior é uma transparência espiritual.
Os romanos chamavam o Universo “mundus” que quer dizer, puro.
O mundo de Deus é sempre puro, inconscientemente puro. Somente o mundo do homem pode ser conscientemente puro ou conscientemente impuro. Quando o homem, pelo uso correto do seu livre arbítrio, crea em si um mundo puro, faz ele coincidir a sua pureza consciente com a pureza inconsciente do cosmos – e é então que ele descobre, pela primeira vez, que o mundo, que é “mundus” (puro), é também um “kosmos”, isto é um mundo “belo”, como os gregos chamavam o mundo.
Para o puro de coração, a pureza e a beleza de Deus transparecem através de todos os mundos de Deus.
A diafania da alma torna diáfanos todos os corpos opacos.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

5 – BEM-AVENTURADOS OS MISERICORDIOSOS, PORQUE ELES ALCANÇARÃO MISERICÓRDIA

À primeira vista, esta beatitude parece ser puramente moral e filantrópica – e ainda com a agravante de que outros nos façam a mesma misericórdia que a eles fizemos.
Se assim fosse, esta bem-aventurança representaria uma decaída da altura das precedentes. Entretanto, nem o caráter meramente moral nem a índole mercenária de retribuição fazem parte desta beatitude, que está bem à altura das outras, embora a sua índole seja profundamente metafísica e univérsica.
Aliás, os grandes Mestres da humanidade, sobretudo o Cristo, nunca falam duma perspectiva puramente moral, horizontal; falam sempre da perspectiva vertical duma metafísica ontológica e mística, lembrando nascentes que brotam do seio das montanhas e daí derivam para as planícies.
Os ensinamentos dos grandes avatares da humanidade nunca são simples rios ou lagos plácidos nos vales, são sempre poderosas cachoeiras nas alturas. De horizontal a horizontal, não há voltagem, há apenas amperagem; não há ectropia, mas apenas entropia. Mas, como ensina a própria ciência, de nível para nível não há força; a força vem de desnível para nível. Onde não há um fundo de metafísica não há física poderosa; onde falta a mística, a ética se esgota logo em simples moralidade.
Esta beatitude anuncia a grande lei cósmica do dar e do receber, e a íntima interdependência entre estas duas atitudes do homem.
Ninguém pode receber algo para além da sua receptividade, porquanto, como diz o antigo adágio filosófico, “o recebido está no recipiente segundo a capacidade do recipiente”.
E a capacidade do recipiente se alarga ou se estreita segundo a maior ou menor atitude de datividade do doador.
A finalidade desta beatitude não é apenas ética ou moral, como parece à primeira vista; ela é altamente mística. O maior beneficiado não é o receptor da misericórdia, mas sim o doador. Através da sua espontânea e desinteressada datividade, o doador crea em si uma atitude de auto-realização em alto grau, alo-realizando os outros. Suposto, naturalmente, que o doador não vise a nenhuma retribuição por parte dos seus bebeficiados. Qualquer especulação, por mais sutil e secreta, no sentido de ser recompensado por seus benefícios, nulifica totalmente o valor da doação.
Por que?
Porque qualquer idéia de recompensa, seja antes ou depois da morte, é egoísmo. Somente o ego humano pode ter semelhante intenção. O Eu divino no homem, o Pai, o Cristo interno, a Luz do mundo, o Reino de Deus, não esperam recompensa, nem da parte dos homens nem da parte de Deus, uma vez que o Eu, na sua essência, é tudo e não necessita de nada; ele apenas desperta ou conscientiza esse Tudo, que é ele mesmo.
Esta conscientização é feita pelos objetos, mas o sujeito é a fonte.
Somente um pobre mercenário espera ser recompensado, escorado por algo de fora.
Somente um homem incompleto deseja ser compensado.
Somente um pobre doente necessita de ser pensado, como a enfermeira pensa os ferimentos.
Mas o Eu não é mercenário, nem incompleto, nem doente.
Portanto, quem dá misericórdia não espera misericórdia da parte dos homens.
Nem espera misericórdia da parte de Deus; mas, segundo leis eternas, a misericórdia de Deus flui, irresistível e espontaneamente, da Fonte plena para dentro de qualquer canal vazio. Quer o homem o saiba e queira ou não, a plenitude da fonte plenifica infalivelmente a vacuidade dos canais.
Pedi – e recebereis...
Buscai – e achareis...
Batei – e abrir-se-vos-á...
A finalidade do pedir, buscar, bater, não está em Deus, mas no homem. O doador não pode dar nada sem que o receptor possua a necessária receptividade – e essa receptividade é creada pelo homem mediante o pedir, buscar, bater.
O ensinamento dos grandes Mestres nunca visa, em primeiro lugar aos objetos do mundo externo, mas sim ao sujeito do nosso mundo interno.
Muitos homens caritativos e filantrópicos, vêem na sua beneficência o fim primário, ou mesmo único, da sua atividade altruística. Querem, acima de tudo, fazer benefícios; não compreendem que o beneficiado não é o alvo primário da beneficiência, mas sim o benfeitor – naturalmente não o ego-canal, que seria egoísmo, mas o Eu-fonte, que é cristificação.
Muitos se iludem, convencidos de que toda a sua beneficência seja puro transbordamento da sua benevolência mística. Pode a beneficência horizontal servir de meio para intensificar a mística vertical, mas nunca pode ser um fim. O segundo mandamento “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, nunca pode substituir o primeiro e maior de todos os mandamentos “amarás o Senhor, teu Deus, com toda a tua alma, com toda a tua mente, com todo o teu coração e com todas as tuas forças”.
Quando a beneficência se torna um fim em si mesmo, em vez de ser um auxílio, transforma-se num empecilho para auto-realização espiritual.
O Universo é o Uno Infinito que transborda para o Verso dos Finitos.
O homem deve agir assim como o Universo age.
Só pode receber da Fonte do Uno na razão direta que dá aos canais do Verso. Quando cessa a evasão rumo aos homens cessa a invasão da parte de Deus. Quem não dá não recebe.
A medida da recipiência vertical é diretamente proporcional à distribuição dativa na horizontal.
Onde cessa a doação para os lados cessa o recebimento de cima.
Estranhamente, quase todas as igrejas cristãs ensinam a seus filhos que devem praticar o bem aqui na terra, a fim de serem recompensados por Deus no céu, entendendo por “céu” um determinado lugar, em tempos futuros e regiões distantes.
Nesse sentido, os teólogos educam os seus adeptos para uma espécie de egoísmo, embora sublimado e póstumo. Por isto, disse o filósofo Bérgson que as igrejas detestam o egoísmo terrestre, mas recomendam o egoísmo celeste.
Felizes são somente os misericordiosos que nem de Deus esperam recompensa por sua misericórdia, embora não possam abolir nem ignorar o fato de que a plenitude flui infalivelmente para dentro da vacuidade – e essa atitude desinteressada é um total ego-esvaziamento, uma vacuidade de tudo e qualquer conteúdo do ego-humano.
Fazer bem aos outros envolve um grande perigo para o benfeitor, e muitos sucumbem a este perigo.
O fariseu no templo, que dava 10% dos seus haveres para fins religiosos e beneficentes, voltou para casa “não ajustado”; com todas as suas beneficências, estava “desajustado”, porque fazia o bem não como um transbordamento de ser bom, mas como um fim em si mesmo, quiçá até para satisfação de sua vaidade pessoal.
É tão gostoso para o nosso ego fazer estatísticas das suas filantropias; sentir o cálido aperto de mão de um beneficiado; ver o sorriso de uma criança ou as lágrimas de um velhinho em face de um benefício recebido. E o homem se esquece facilmente de que é “servo inútil”, e vai creando em si um complexo de utilidade e utilitarismo.
Tanto o Cristo como Krishna, recomendam a seus discípulos que trabalhem intensamente, mas renunciem a cada momento aos frutos do seu trabalho.
Mas o nosso ego dificilmente compreende essa linguagem dos Mestres. Quando age, sucumbe ao falso-agir, visando em primeiro lugar aos frutos do seu trabalho; outros preferem não-agir, caindo numa total passividade; poucos conseguem as alturas de um reto-agir, trabalhando intensamente em qualquer setor da atividade, não por amor aos frutos do trabalho, nem à recompensa, mas por amor ao Pai, ao Cristo interno, à Luz do mundo, ao Reino de Deus dentro do homem, que deve ser realizado por qualquer atividade do ego.
O homem é aqui na terra o único ser que se pode fazer melhor do que Deus o fez. Disse alguém que Deus creou o homem o menos possível para que ele se possa crear o mais possível.
O homem é o único ser ao mesmo tempo creatura e creador. O seu livre-arbítrio é um poder creador ou destruidor; por ele pode o homem fazer-se bom ou mau.
Não são os atos que o tornam bom ou mau, é a sua atitude interna, produto do seu livre-arbítrio.
Essa atitude é o seu modo-de-ser, a árvore da atitude, da qual brotam os frutos dos atos.
Ser misericordioso é ser-bom, e todo o homem bom faz-o-bem. Do ser-bom há um caminho para o fazer-bem, como de cima as águas fluem para baixo. Mas o simples fazer-o-bem não é prova de ser-bom; pode o homem fazer o bem por outros motivos, até por motivos inéticos, como vaidade e ego-complacência.
Ou, na linguagem de precisão matemática de Einstein: “Do mundo dos fatos (fazer o bem) não conduz nenhum caminho para o mundo dos valores (ser bom); porque os valores vêm de outra região”.
Poderia o grande matemático ter acrescentado: do mundo dos valores há um caminho para o mundo dos fatos; da qualidade de ser bom há um caminho para a quantidade de fazer o bem.
Da benevolência mística conduz um caminho para a beneficência ética.
Da fonte da mística derivam todas as águas para os canais da ética.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

4 – BEM-AVENTURADOS OS QUE TÊM FOME E SEDE DA JUSTIÇA, PORQUE ELES SERÃO SACIADOS

Felizes os que têm fome e sede...
Pode-se lá imaginar maior desafio do que este?
No mundo dos profanos vale exatamente o contrário: felizes os fartos porque nunca sofreram fome nem sede.
E, de tão fartos, esses pseudo-felizes acabam quase sempre tão infelizes, que toda a sua fartura termina em insuportável fastio.
Esses fartos estão quase sempre fartos da sua vida.
Consta pela estatística internacional que o maior número de suicídios ocorre entre os ricos e abastados, e ocorre invariavelmente em tempo de farturas e bem-estar. Na Europa, após a última guerra mundial, no período de carestia, houve muito menos suicídios do que em longos períodos de paz e fartura. O homem profano acha tão insuportável uma vida 100% satisfeita e farta que tenta evadir-se deste insuportável tédio da sua vida terrestre.
Se muitos morrem de fome, muitíssimos se suicidam de fastio.
No entanto, com a fome e sede de que fala o Mestre acontece precisamente o contrário: ter fome e sede da justiça, da verdade, intensifica a felicidade e crea uma experiência de vitalidade potencializada.
Nenhuma prosperidade física é por muito tempo suportável sem uma base metafísica.
Quando um homem começa a fome e sede do manjar espiritual e das águas vivas do espírito, principia ele a viver plenamente, e nunca mais desejaria viver sem essa bendita fome e essa deliciosa sede. Tem pena dos pobres profanos que nunca sentiram essa inefável vivência metafísica e mística.
Os ego-satisfeitos são uns infelizes, mas não o sabem.
Os egos-insatisfeitos são os felizes, e têm plena consciência da sua felicidade.
Dinheiro, sexo e divertimento – essa trindade de objetos exteriores não permite ao homem profano ter sede de algo além dessa infeliz satisfação. E quando algum profano é ameaçado de perder a sua infeliz satisfação; quando é incapaz de se deliciar ulteriormente com dinheiro, sexo e divertimentos – que faz ele? Tenta narcotizar com derivativos e dispersivos a sua vacuidade, tenta anestesiar temporariamente as suas dores, não para ser feliz, mas para sentir menos a sua infelicidade, por algum tempo. Ele conhece uma farmacopéia de expedientes, comprimidos, injeções e analgésicos, que lhe suavisam as dores do ego doente, embora nenhum desses remédios lhe possam curar os males; contenta-se com paliativos e camuflagens menos dolorosos do que a operação cirúrgica recomendada pelos mestres.
É esse um dos mais incompreensíveis enigmas do homem-ego; ele adora devotamente os seus tiranos. Se não os adorasse, acabaria com esses ídolos. Mas o fato é que ele adora sadicamente os que lhe causam tamanhas dores – tão insincero é ele consigo mesmo. “Ama os teus inimigos” – será que o homem ego não parodia estas palavras do Cristo?
Quando, porém, esse homem suspeita a presença do seu Eu divino, nas entranhas do seu ser, então começa ele a sofrer as dores de parto da sua prole. Sofre a agonia duma “feliz insatisfação”. Compreende o que o Nazareno quis dizer com as palavras ditas à samaritana: “Quem bebe desta água torna a ter sede, mas quem beber da água que eu lhe darei nunca mais terá sede”, de outras águas que os profanos costumam oferecer a seus amigos. A mulher, “dos cinco maridos mais um amante”, no momento não compreendeu o sentido profundo destas palavras, como geralmente os profanos não as compreende.
Mas, quando o homem descobre o sabor das águas vivas, dá-se nele a grande metamorfose.
Parece-se então com uma dessas lagartas das nossas hortas ou pomares, em vésperas de transformação. Não comem mais, não se divertem mais: pressente uma vida nova, a vida ignota da borboleta alada. Esse homem parece triste e solitário, ensimesmado. Parece que toda a sua ruidosa explosão de ontem e anteontem se vai focalizar numa silenciosa implosão... A lagarta do ego, no acaso da sua metamorfose, suspende todas as atividades de outrora. Fecha todas as portas para o mundo exterior... Enclausura-se num invólucro impenetrável, hermeticamente fechado, e dentro deste esquife-berço o ego morimbundo preludia a vida do Eu nascituro... Vai elaborando os órgãos da sua incógnita borboleta.
Como será essa borboleta do Eu nascituro? Dessa nova e nunca vista creatura, que dormia invisível na lagarta do ego?
De modo algum pode a lagarta saber dos mistérios do lepidóptero nascituro – mas o seu subconsciente vital dirige tudo com infalível acerto e segurança, rumo à existência alada de amanhã; a sua fé biológica lhe inspira tudo o que tem de fazer...
Quando o homem se acha maduro para essa metamorfose, o supraconsciente dormente nele, a sua anima naturaliter cristiana, sabe como elaborar os órgãos e as faculdades necessários para uma vida nova em outra dimensão.
“Se o grão de trigo não morrer...”
“Eu morro todos os dias...”
e a alvorada do Eu Crístico, que nasce do ocaso do ego-humano em nada se parece com o que foi – assim como a borboleta nenhuma semelhança tem com a lagarta que se arrastava nas poeirentas baixadas da terra e não fazia senão comer e digerir. O lepidóptero voeja nas luminosas alturas do sol, e só desce de vez em quando para posar sobre uma flor e beber uma gotinha de néctar do perfumoso cálice.
Assim o Eu divino do homem, redimido das misérias do ego-humano, contempla de cima todas as coisas da terra, mantendo apenas o contacto indispensável com as debaixo, enquanto vive na pureza da luz celeste...
Lá se foi a sua infeliz satisfação de anteontem, bem como a sua feliz insatisfação de ontem!...
Despontou a feliz satisfação de hoje, de amanhã e de sempre...
A fome e sede da verdade foram, finalmente, saciadas...
Mas, para que a lagarta rastejante pudesse transformar-se na borboleta voadora, foi necessário que se interpusesse entre as duas vidas uma espécie de morte, a pseudo morte da crisálida...
A vida da borboleta é a mesma vida da lagarta; é a mesma essência vital, numa outra existência; é uma sublimação e transformação duma vida única – e esta metamorfose foi realizada graças à passagem pela pseudo morte da crisálida. Se a lagarta não tivesse uma fé biológica na vida, não permitiria, serena e calma, um mergulho nessa morte misteriosa da crisálida...
“Eu sou a ressurreição e a vida; quem tiver fidelidade a mim, não morrerá, e, ainda que tenha morrido, viverá para todo o sempre”.

3 – BEM-AVENTURADOS OS MANSOS, PORQUE ELES POSSUÍRÃO A TERRA

Antigamente, desde os tempos de Newton, o Universo se parecia com uma espécie de monarquia solar ou estelar; o nosso sistema planetário era regido por Sua Magestade o monarca “Sol”, que dava ordens aos seus súditos planetários, mediante as forças de atração e repulsão, e estes obedeciam à autoridade solar. Era o regime da autoridade e da obediência.
Em nossos dias, porém, Einstein vê no Universo uma fascinante cosmocracia, cujo soberano não tem localização determinada, nem irradiação central, mas está onipresente e atua simultaneamente de dentro de cada átomo. O conceito de uma força central mecânica foi substituído pela visão da presença orgânica. A técnica da máquina solar cedeu à concepção de uma espécie de vida cósmica universal.
Esta visão do centro como onipresença faz lembrar as palavras de Santo Agostinho: “O centro de Deus está em toda parte”.
É este o segredo da alma da natureza, que atua através de uma força sem esforço, que na intuição de Salomão, abrange o cosmos de uma à outra extremidade e dispõe tudo com poder e suavidade: “A sabedoria de Deus brinca todos os dias sobre toda a redondeza da terra”.
Na natureza tudo acontece com poder e silêncio, com um silêncio poderoso; o sol nasce e se põe em profunda quietude; o sol move gigantescos sistemas planetários, mas penetra suavemente pela vidraça de uma janela sem a quebrar, acaricia as pétalas de uma flor sem as lesar e beija as faces de uma criança dormente sem a acordar. As estrelas e galáxias descrevem as suas órbitas com estupenda velocidade pelas vias inexploradas do cosmos, mas nunca deram sinal da sua presença pelo mais leve ruído. A Luz, a vida e o espírito, os maiores poderes do Universo, atuam com a suavidade de uma aparente ausência.
Como nos domínios da natureza, o verdadeiro poder do homem não consiste em atos de violência física, mas sim numa atitude de presença metafísica; não se trata de fazer algo, mas de ser alguém.
Quando o homem atinge o clímax do seu poder toda a antiga violência acaba em benevolência. A violência é sinal de fraqueza, a benevolência é indício de poder. O homem-ego confunde violência com poder, mas o homem-Eu evita toda violência quando entra na zona do poder; para ele, ahimsa (não violência) é inseparável da satyagraha (apego à verdade).
Somente o homem-ego, na zona da evolução mental, embora tenha superado o natural, não entrou ainda no mundo espiritual; por isto julga necessário usar violência para manifestar poder.
Entre o natural e o espiritual vigora uma secreta afinidade, ao passo que o mental está em luta entre esses dois mundos.
A proclamação de que os mansos são os realmente felizes e possuirão a terra, é uma visão profética, uma antecipação apocalíptica de uma futura humanidade, que estabelecerá o Reino de Deus sobre a face da terra pelo misterioso poder da benevolência, e não pela ominosa fraqueza da violência.
E quando aparece um homem que revela o seu poder pela mansidão, pode ele ser considerado como um espécime e uma antecipação dessa humanidade do futuro.
O profano comum entende que o homem espiritual é uma espécie de “galinha-morta”, que não deve insistir nos seus direitos, que deve tolerar com apatia e indiferença todos os abusos e não reprimir com energia nenhuma indisciplina; não compreende que a expulsão dos vendilhões do templo seja compatível com a alta espiritualidade do Nazareno. O homem profano identifica mansidão com fraqueza e indiferença, rigor e energia com ausência de espiritualidade; não
compreende que o homem espiritual possa defender com entusiasmo uma causa sagrada, sem ser impelido por nenhum sentimento de egoísmo ou ofensa pessoal.
Os grandes Mestres, porém, sabem ser severos e rigorosos sem renegarem a mais perfeita mansuetude e benegnidade; são, por vezes, tão carinhosamente cruéis que nenhum profano cruelmente cruel é capaz de os compreender.
Violenta non durant, diziam os antigos romanos, as coisas violentas não duram.
O ego tenta apoderar-se e possuir as coisas da terra pela violência – e por isto nunca as possui realmente. É que as coisas do mundo de Deus têm um misterioso instinto, como que um sagrado pudor de não quererem ser violentadas e estupradas. As filhas da natureza são tão delicadas e virginais que não querem ser possuídas à força. Quem delas se apodera não as possui, embora as tenha encarceradas, encaixotadas e engarrafadas; ainda que as registre e carimbe como sua propriedade, com todos os seguros da burocracia social.
As coisas do mundo de Deus só podem ser realmente possuídas assim como o Deus do mundo as possui: com suavidade e ternura; assim como a luz possui as flores, como o amor possui o amado, como a alma possui o corpo, como a vida possui o organismo.
Quando algo ou alguém não quer ser possuído, nada e ninguém o pode possuir, embora o segure entre os dedos crispados ou guarde num cofre forte, por detrás de sete chaves.
Possuível e possuído é somente aquilo ou aquele que deseja ser possuído. Do contrário, podem ser os dois uns possessos – mas não há possuído nem possuidor. Onde não há espontaneidade bilateral não há verdadeira posse nem possuimento.
Como dissemos, a posse é muito mais uma atitude metafísica do que um ato físico. Possuir é algo do mundo da luz, da vida, do amor, do espírito – e não da matéria.
E é precisamente por esta razão que os possuidores da terra são os não-violentos, os mansos, os gênios das auras imponderáveis, e não da matéria ponderável. Os violentos, sobretudo os da violência mental e emocional, nunca possuirão nada, embora o tenham preto sobre branco, registrado e carimbado no cartório.
Julgam possuir as coisas da terra, mas são apenas por elas possuídos e possessos.
O que é violentamente possuído está envenenado por fluidos maléficos e será sempre um malefício para o seu possuidor.
O que Deus uniu homem algum o pode desunir – mas Deus é amor.
O que não é unido pelo amor não é realmente unido.
Quem não possui pela alma não possui.
O Universo e todas as suas riquezas são daqueles que deles não se apoderaram e em voluntária renúncia abriram mão de tudo e não possuem nada.
O desapego é o único meio de possuir.
A total libertação é a única posse real.
A verdadeira posse não é um ato físico, mas sim uma atitude metafísica do homem.
As palavras do Nazareno sobre a posse da terra pelo não-possuimento, pela mansidão, só tinham sentido depois da experiência mística duma “noite toda em oração com Deus”. Semelhante paradoxo não era possível num ambiente de profanidade ou mera intelectualidade. Aliás, os grandes paradoxos da verdade brotam sempre do mundo invisível do espírito, e nunca do mundo visível da matéria nem do intelecto.
Quando a natureza percebe que o homem não lhe corre no encalço para se apoderar dela, ela mesma vai no encalço do homem para lhe oferecer espontaneamente seus tesouros.
Quando a natureza percebe que o homem a cobiça, afasta-se dele, porque o secreto heliotropismo de todas as coisas de Deus desconfia do homem que a adora ou explora. A natureza não quer ser idolatrada nem brutalizada pelo homem. Não quer ser ídolo nem escrava, mas amiga do homem. Não quer ser obrigada a servir, quer servir espontaneamente ao homem, assim como serve a Deus em exultante liberdade.
Quem algo espera do mundo, deste nada pode o mundo esperar – mas quem nada espera do mundo, deste pode o mundo esperar tudo.
A violência consiste invariavelmente em atos do ego – a mansidão é sempre uma atitude do Eu.
Não necessita de compulsão quem possui compreensão.
Não necessita de forçar quem sabe amar.
Barulhenta é toda violência, silenciosa é a mansidão.
Não necessita de apelar para a força material quem tem em si o poder espiritual.
Suave e silencioso é tudo que é grande, violento e ruidoso é tudo que é pequeno.
Se os homens de Deus não fossem mansos, não agiriam como Deus age.
A mansuetude pode parecer fraqueza aos olhos dos violentos, mas ela se sabe mais forte do que toda a violência dos pseudo-fortes.
Quem é forte não tem necessidade de ostentar violência – somente os fracos têm mania de serem violentos.
A violência é como a alopatia, que remedeia os sintomas imediatos do mal, mas não cura a causa profunda dele; a mansidão atua como a homeopatia, é de ação lenta e profunda, embora não se lhe perceba efeito imediato.
A violência calcula tudo a curto prazo, ao passo que a mansidão visa tudo a longo prazo.
O míope tem de ser violento porque lhe falta a longe-vidência; atua no tempo e no espaço, e não no eterno e no infinito.
O homem manso pode parecer um derrotado – mas a sua aparente derrota é sempre uma vitória verdadeira; na sua retaguarda marcha sempre a vanguarda; em todas as suas fraquezas é ele sempre um herói.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

2 – BEM-AVENTURADOS OS TRISTES, PORQUE ELES SERÃO CONSOLADOS

Quem são esses tristes?
O grego diz “penthountes” que o latim traduziu por “qui lugent” os que estão de luto.
Evidentemente, essa tristeza, esse luto se referem ao ego humano; só ele pode estar triste ou de luto. É experiência geral que, no princípio, o nosso ego fica triste, chora e se veste de luto, quando o Eu divino em nós nasce, porque este não pode nascer sem que aquele morra de algum modo.
É linguagem geral de todos os Mestres espirituais que algo no homem deve morrer para que algo possa nascer. Não há nascimento sem morte. Paulo de Tarso afirma que ele (seu ego) morre todos os dias, para que seu Eu, o seu Cristo interno, possa nascer e viver.
E o próprio Cristo diz: “Se o grão de trigo não morrer ficará estéril, mas, se morrer, produzirá muito fruto”.
Morte e vida são os dois pólos sobre os quais gira toda a existência humana.
Se o ego, convidado a morrer, soubesse que ele não vai morrer realmente, mas mudar de vida e de vivência, não se entristeceria com essa quase-morte. Mas o ego não sabe, por ora, dessa outra espécie de vivência em que vai entrar, e por isto fica triste, chora e se veste de luto. O que o ego tem de mais caro e querido é a sua idolatrada egoidade, tão antiga como a própria humanidade, milhões de anos. E essa egoidade multimilenar na raça humana, tem também alguns decênios na pessoa individual de cada homem. E agora, um Mestre carinhosamente cruel convida esse idolatrado ego a morrer...
É perfeitamente natural, que o ego, se aceitar o convite mortífero, se revista de luto e tristeza. Segue atrás do negro ataúde do seu ego morto, baixa o ego-cadáver ao túmulo, deita umas pasadas de terra fria sobre o esquife, derrama amargas lágrimas sobre os restos mortais do seu ídolo morto e sente-se todo em chaga viva.
Que coisa sobrou ao homem-ego depois que sepultou o seu único ídolo sobre a face da terra?
Por algum tempo, talvez por anos a fio, a vida desse homem não tem mais encantos... Em vão desabrocham flores à beira do caminho... Em vão brilham as estrelas no firmamento noturno da sua vida... A treva é espessa, e as estrelas são longínquas... Em vão procuram os amigos consolar esse morto-vivo... Ele perdeu tudo – e ainda não encontrou nada... A alvorada de uma vida nova não amanheceu ainda para além do ocaso da vida velha que se foi... O crepe escuro do negro ataúde não permite ainda vislumbrar a gaze branca de um berço novo...
E o Mestre tem a coragem de dizer que é feliz o homem que chora sobre o túmulo do seu ego morto... Pode não ser feliz por causa desse luto – mas pode ser feliz a despeito dele. Pode ser feliz por causa de algo que vem depois dessa morte e desse luto – se é que esse homem suspeita ou adivinha esse algo que vem depois.
Aos poucos, percebe esse enlutado que as suas alegrias antigas eram algo profano e triste, e que sua tristeza de agora tem um discreto sabor de alegria, não dessa alegria ruidosa que os profanos chamam alegria, mas, de algo que tem sabor de uma tristeza superficial e duma alegria profunda.
Mas essa alegria do enlutado está numa outra dimensão, está no misterioso anonimato da felicidade. Essa felicidade anônima é tão sagrada que nada tem que ver com as chamadas alegrias dos profanos. É como o misterioso cintilar das estrelas da meia-noite, mais adivinhadas do que conhecidas.
A alegria que o ego enlutado sente é tão sagrada que o homem não ousa falar dela aos seus antigos companheiros ainda não mortos, com medo duma possível profanação ou decepção.
Por isto, esse ego enlutado prefere viver a sós, na sua doce amargura, na sua amarga doçura. Se tiver a sorte de encontrar um sócio de luto, fala com ele a meia voz sobre sua sagrada tristeza, medindo as palavras cautelosamente.
Verifica aos poucos que, por nada deste mundo, trocaria sua tristeza por nenhuma das chamadas alegrias dos profanos. Tem pena dos alegres por não gozarem a querida tristeza de que ele goza.
Um belo dia – ou numa noite feliz – descobre ele que a sua tristeza é apenas a sombra projetada por uma luz misteriosa que nele está e cuja presença ele ignorava. Por amor a essa luz ama também as suas sombras e verifica que é uma sombra luminosa, espécie de sol da meia-noite que ilumina as regiões nórdicas do globo terrestre.
E quando um antigo companheiro de profanidade o convida para aquelas outras “alegrias” repletas de ruídos, esse homem prefere a sua doce amargura a todas as doces doçuras dos inexperientes desse novo mundo que nele despontou.
Uma gotinha dessa felicidade anônima lhe vale mais que toneladas daquele bagaço profano que outrora ele chamava de gozo e prazer.
Esse felizardo enlutado compreende que a “consolação” de que o Nazareno fala não é algo que venha depois da tristeza, mas que é a quintessência dessa mesma tristeza, a alma daquilo que aos inexperientes parece ser tristeza.
Verifica que o Reino dos Céus dessa consolação não é algo como recompensa por essa tristeza, mas é esta própria tristeza vista através de outro prisma, contemplada duma outra perspectiva e dimensão.
Esse homem não espera trocar a sua tristeza por alguma consolação, espera apenas conservar para sempre a sua clarividência e contemplar para sempre a Realidade do Seu Eu verdadeiro para além de todas as facticidades do seu ego ilusório.
Compreendeu, finalmente, que a felicidade não é algo que o homem receba de fora, mas que é ele mesmo essa felicidade, quando conscientiza a sua realidade divina de dentro.
O milionário da felicidade interior não necessita de correr freneticamente no encalço das pequenas moedas dos gozos externos, que os profanos chamam felicidade. Pode abrir mão desses pobres prazeres – e assim ser considerado como triste aos olhos dos sonhadores de sonhos e caçadores de sombras. Quem goza de uma felicidade profunda pode prescindir de gozos superficiais.
A verdadeira felicidade está numa outra dimensão, ignorada dos pobres gozadores. E quando alguém goza de uma profunda felicidade vinda de dentro da alma, pode até encontrar gozo nas pequeninas coisas de fora; não necessita de estímulos violentos para gozar; uma modesta florzinha à beira da estrada; o sorriso de uma criança; o gorgeio de um passarinho; o murmúrio de uma fonte; a fosforescência de um vaga-lume; um nascer ou pôr do sol; o silêncio da floresta ou o ribombar do trovão – tudo dá gozo e prazer a quem encontrou dentro de si a fonte de uma felicidade perene. Os gozos dos profanos, sem base na felicidade interior, sofrem de um mal intrínseco: necessitam de estímulos cada vez mais violentos para serem ainda sentidos e gozados. E, por fim, a possibilidade de gozar fica tão embotada que acaba em total incapacidade de gozar ainda. O próprio gozo progressivamente intensificado produz, por fim, a incapacidade de gozo. O gozo atrofia a gozabilidade – e então o infeliz gozador está maduro para o hospício, para o hospital ou para o cemitério – ou então para um inferno em plena vida.
Toda a física acaba fatalmente em fastio se não tiver um fundo de metafísica.
O felizardo que não baseia a sua felicidade em gozos externos, mas usa esses como simples condimentos e acessórios, pode gozar sempre sem fastio nem náuseas de super-saturação. Pode parecer triste aos olhos dos inexperientes, mas é um homem profundamente feliz dentro de si mesmo.

1 – BEM-AVENTURADOS OS POBRES PELO ESPÍRITO – PORQUE DELES É O REINO DOS CÉUS

Quem é pobre pelo espírito?
Quem é bem-aventurado, feliz?
Que é o Reino dos Céus?
Durante quase 20 séculos se têm discutido as palavras “ptóchói to pnéumati” como está no original grego do primeiro século, ou “pauperes spiritu”, como lemos na tradução latina. E as interpretações dessas palavras têm sido as mais diversas.
Alguns chegaram ao absurdo de traduzir os “pobres de espírito”, proclamando felizes os que têm pouco espírito, os que são pobres, deficientes de espírito, os imbecis e idiotas. Neste caso, o próprio Jesus não faria parte dos bem-aventurados, e dele não seria o Reino dos Céus, porque não era pobre de espírito nesse sentido, mas sim rico e riquíssimo, quer se entenda por espírito a faculdade espiritual, quer a faculdade intelectual.
Mas os que o Mestre chamou felizes são os que são pobres pela livre escolha do seu próprio espírito, do seu livre arbítrio; não os que são compulsoriamente pobres, que são milhões, e talvez infelizes, mas os que, podendo possuir todas as riquezas da terra, se sentem tão ricos dos bens espirituais que voluntariamente se desapegaram dos bens materiais, usando apenas o necessário para sua manutenção física.
Também, que ia fazer um milionário espiritual com essas pobres riquezas materiais? Como ia um homem espiritualmente adulto ocupar-se com as bonecas de celulóide ou outra matéria com que se divertem as crianças num jardim de infância? O rico de espírito não sabe como brincar com essas bonecas dos ricos da matéria; a sua mentalidade espiritualmente adulta não acha suficiente ponto de contacto com esses brinquedos que encantam os espiritualmente infantes.
Disse alguém: “É tão difícil para um sábio adquirir riquezas como é difícil para um rico adquirir sabedoria”.
Muitos pensam que, para não dar importância aos bens materiais, deva o homem ser muito virtuoso. Não é bem exato. Pode o homem virtuoso renunciar aos bens materiais e não ser sábio nem feliz. A verdadeira renúncia não vem da virtuosidade, mas sim da sabedoria, da compreensão da verdade. Pode a virtuosidade, em certos casos, ser um preliminar para a sabedoria, mas não é a própria sabedoria. Saber quer dizer saborear, tomar o sabor de um alimento e senti-lo como saboroso. Mas, para o homem meramente virtuoso, pode a renúncia ter sabor amargo, pode ser “caminho estreito e porta apertada”; somente para o sábio, o sapiente, é a renúncia “jugo suave e peso leve”.
Pode alguém renunciar por dever, e até por querer – e é um homem virtuoso.
Mas o verdadeiro sábio renuncia por compreender, por saber – e saboreia a verdadeira felicidade.
O dever e o querer do virtuoso são atos de boa vontade do homem-ego – mas o compreender do sábio é uma atitude da razão espiritual, do Eu divino no homem.
Virtude vem de “virtus”, que em latim, quer dizer força; o virtuoso age em virtude de uma obrigação, de compulsão moral; ele se sente como um escravo, como um bom escravo – “eu devo renunciar”. Ele renuncia sob a pressão de um doloroso e maldito tu deves. Age como um bom escravo – não age como um homem livre, porque não compreende a verdade, a verdade sobre si mesmo; identifica-se ainda com o seu ego, com o seu ego virtuoso, de boa vontade. A verdade é o único poder libertador: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. A compreensão da verdade é a única força que realmente liberta o homem. Quem age sem compreender pode agir virtualmente, mas não age sabiamente.
Sabedoria, ou sapiência, não é outra coisa senão a compreensão da verdade libertadora.
Quem se identifica ainda com o seu ego, mesmo com um ego virtuoso, age virtuosamente, mas não age livremente.
Somente quem, pelo autoconhecimento da mística, se identifica com o seu Eu divino, esse compreende a verdade sobre si mesmo, esse age com sabedoria, age livremente – e este é realmente feliz. O sábio saboreia a deliciosa verdade sobre si mesmo, saboreia que “eu e o Pai somos um”, que “eu sou a luz do mundo”, que “o Reino de Deus está dentro de mim”, e age livre e deliciosamente à luz desta compreensão da verdade que o libertou, inclusive da virtuosidade.
“Por Moisés foi dada a lei – pelo Cristo veio a verdade e veio a graça”.
O homem virtuoso é um bom discípulo de Moisés, porque age sob o signo do dever – tu deves fazer isto, tu não deves fazer aquilo. Ele age como escravo do dever.
O homem sábio é discípulo do Cristo, age em nome da verdade e da graça, age à luz do compreender.
A lei escraviza.
A verdade e a graça libertam.
Feliz, realmente bem-aventurado, é somente aquele que renunciou aos bens materiais por sapiência, pelo saboreamento da verdade sobre si mesmo, e esta renúncia por compreensão nunca é dolorosa, mas indizivelmente deliciosa.
O homem virtuoso sofre a sua renúncia – o homem sábio saboreia a sua renúncia.
Renunciar é, para o sábio, para o compreendedor da verdade, para o autoconhecedor, uma afirmação de força e poder, de entusiasmo e plenitude, da “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”.
Por isto, o homem que renunciou por sabedoria e compreensão nunca se sente como se fosse um herói, algum super-homem, alguma exceção da regra; sente a sua renúncia como algo natural e evidente. O apego aos bens materiais seria para ele desnatural. A natureza toda age com leveza e facilidade; segue sempre o caminho de menor esforço, como diz Einstein. A natureza não conhece virtuosidade, compulsão – ela age sempre com silêncio e naturalidade, porque é inconscientemente sábia, regida pela suprema sabedoria cósmica, que nada sabe de esforço, de dificuldade ou sacrificialidade.
Enquanto o homem se acha na escola primária da lei, soletrando o abc do dever, pode ele ser vicioso ou virtuoso, não fazer ou fazer dificilmente o que deve; mas quando ingressa na universidade da verdade e da graça, entra ele na zona do compreender, da sapiência e do saboreamento da verdade.
Para os principiantes é necessário o “caminho estreito e a porta apertada” da virtuosidade do dever.
Os finalizantes, porém, só conhecem “o jugo suave e peso leve” da sabedoria e compreensão.
Aqueles andam ainda “aflitos e sobrecarregados”, com sua virtuosidade – mas estes acharam “descanso para sua alma”, na sabedoria da compreensão.
Os pobres pelo espírito são os que desapegaram interiormente, e, quanto possível também exteriormente, dos bens materiais, mentais e emocionais, de toda a bagagem do velho ego, não em virtude de um maldito dever, mas à luz de um bendito compreender. Estes são os felizardos, os realmente felizes – porque deles é o Reino dos Céus.
“É” e não apenas “será”. Esses saboreiam, aqui e agora, o Reino dos Céus que está conscientemente dentro deles. Não esperam um céu só depois da morte, mas vivem agora mesmo, aqui e agora, no céu da verdade, da liberdade e da felicidade. Superaram o inferno do ego vicioso, de má vontade, e também o purgatório do ego virtuoso de boa vontade e ingressaram no céu do Eu da sabedoria.
O jovem rico do Evangelho era um homem virtuoso, que havia cumprido todos os mandamentos, tudo que devia fazer – mas não era um homem sábio; era um perfeito discípulo de Moisés, pelo cumprimento da lei – mas não chegou a ser um discípulo do Cristo, pela verdade e pela graça. Formado na escola primária do dever, não ingressou na universidade do compreender.
Que me falta ainda? Pergunta ele a Jesus, depois de ter feito tudo o que devia fazer. E o Mestre lhe responde: “Uma coisa te falta ainda”. Nada lhe faltava naquilo que ele devia fazer – tudo lhe faltava no que devia ser. À pergunta “o que devo fazer” o Mestre responde “se queres ser”. Não se trata mais de fazer algo, tratava-se de ser alguém. Só é alguém quem está na verdade do ser, para além de todas as pseudo-verdades do fazer. O fazer algo é necessário, mas somente o ser alguém é suficiente. Aquilo é dos virtuosos – isto é dos sábios.
A suprema sabedoria e felicidade consiste em ser alguém pela compreensão da verdade libertadora.
A auto-realização do reto-agir da ética supõe o autoconhecimento do reto-ser da mística.

MÍSTICA DAS BEATITUDES – AUTO-RETRATO DA ALMA DE JESUS

TOMANDO PERSPECTIVA

Se o Evangelho é a alma da Bíblia, então as Beatitudes são o coração do Evangelho.
As oito Beatitudes, ou Bem-aventuranças, que formam o início do Sermão da Montanha, são jubilosas exclamações que romperam da transbordante plenitude do espírito do Cristo, após uma noite inteira de comunhão com Deus, como diz o evangelista.
Quase no início da sua vida pública, passou Jesus uma noite toda “em oração com Deus”, em êxtase, em samadhi. A alma do Nazareno estava mergulhada no oceano imenso da Divindade. E, quando, de madrugada, emergiu desse banho de luz e força, de amor e felicidade, foi tão irresistível o entusiasmo de que estava repleto, que não pode conter em si a divina plenitude, e, como o sol nascente, irradiou os seus fulgores sobre os discípulos e o povo que lhe correram ao encontro, sentindo ou adivinhando algo de extraordinário.
Desceu do monte, em cujo cimo havia passado a noite em mergulho místico, e, chegando a uma esplanada e vendo a fome e a sede do povo, sentou-se numa colina, e exclamou oito Bem-aventurados!... Bem-aventurados!...
As Beatitudes não são ensinamentos, a bem dizer; são experiências pessoais da vida íntima de Jesus que romperam as válvulas de retenção da sua alma e se espraiaram, irresistivelmente, sobre a humanidade de todos os tempos e países. Toda a plenitude, quando atinge o clímax da sua abundância, tende a difundir-se em derredor. Toda a explosão supõe uma implosão, e a implosão mística de Jesus havia atingido o seu máximo nessa noite, nas colinas de Kurun Hattin, ao sudoeste do lago da Galiléia.
As Beatitudes são o auto-retrato de Jesus.
Por isto as Bem-aventuranças não devem ser lidas ou ouvidas senão numa atitude de intensa espiritualidade. Quem lê ou ouve estas exclamações de entusiasmo místico num estado de profanidade, ou mesmo de mera intelectualidade, nada sentirá da sua sacralidade; possivelmente, as achará absurdas e revoltantes. Imagine-se: chamar felizes os pobres, os sofredores, os injustiçados, os famintos e sedentos, os que sofrem perseguição e difamação! Onde se ouviu maior paradoxo, mais revoltante sadismo, mais acerba ironia! Realmente, do plano horizontal do homem-ego, ninguém pode nem deve ler estas palavras, que brotaram das luminosas profundezas do homem-Eu, do homem-crístico, e só podem ser compreendidas e saboreadas dessa perspectiva de experiência mística da qual brotaram.
Não são palavras ego-pensadas, são experiências Cristo-vividas. Só quem pode dizer com Paulo de Tarso “já não sou eu que vivo – o Cristo é que vive em mim”, só esse pode saborear devidamente as Beatitudes. O homem ego-vivente, ficará apático, ou até revoltado, em face de tamanha sublimidade.
Quanto menos o leitor for ego-agente e quanto mais for Cristo-agido, tanto melhor compreenderá a sapiência dessa divina loucura.
É, pois, necessário que o leitor, antes de ler as Beatitudes, se ponha no mesmo ambiente interior em que elas foram vividas naquela bendita madrugada. Enquanto o homem não estiver devidamente sintonizado com a alma divina do Universo, com o Cristo-cósmico, não estará em condições de assimilar as lucerias e calorias das Bem-aventuranças do Cristo.
Aliás, esta sintonização Cristo-cósmica é o requisito para a compreensão de toda e qualquer palavra de Jesus que os Evangelhos nos conservaram. O que o grosso da humanidade entende por “meditação”, pouco ou nada tem que ver com essa sintonização crística. Quem pensa e analisa não entrou na verdadeira meditação, durante a qual o homem se deve calar, para que Deus lhe possa falar.
Quando o homem fala – Deus se cala.
Quando o homem pensa – Deus se dispensa.
Quando o homem deseja algo – Deus se eclipsa.
A verdadeira meditação é simplesmente um total esvaziamento de todo e qualquer conteúdo do ego-humano, para que a plenitude divina possa fluir para dentro dessa vacuidade humana. A fonte da plenitude plenifica somente a vacuidade. O homem ego-pleno não pode ser teo-plenificado, ou, em linguagem bíblica: “Deus resiste aos soberbos (ego-plenos) e dá sua graça aos humildes (ego-vácuos)”.
Neste mesmo sentido disse o Mestre:
“Eu te agradeço, meu pai, que revelaste estas coisas aos simples e pequeninos e as ocultaste aos eruditos... Quem não receber o Reino de Deus como uma criança não entrará nele”.
Muitos não conseguem reduzir-se a uma atitude de não pensar nada, e ficar ao mesmo tempo plenamente conscientes; quando não pensam, estão em perigo de cair em transe, na auto-hipnose, no sono, e nada resolvem. Mas quando o homem desce ao nadir do pensamento e sobe ao zênite da consciência, então está em verdadeira meditação, ou contemplação, e só então pode compreender espiritualmente e saborear deliciosamente o verdadeiro sentido das Beatitudes do Cristo.

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Nas seguintes páginas, ao que parece, teremos de contradizer a tudo que acabamos de dizer: temos de falar, pensar, analisar as palavras de Jesus – que só deviam ser vividas e saboreadas em silêncio.
Prevenimos, por isto, o leitor de que aquilo que vamos dizer é a alma, mas apenas o corpo das Bem-aventuranças. Poremos apenas umas setas à beira da estrada; mas estas devem ser contempladas e depois abandonadas. Se o viandante se agarrar a um desses marcos à beira do caminho, ou até o arrancar e levar consigo, não cumpre a mensagem secreta do marco, que é transcendente, e não imanente. A mensagem da seta não é o aqui mas o além. O viandante deve saber que a seta não quer dizer “aqui é a cidade X” que ele demanda, mas ela é além, digamos daqui a 10 ou 100 km; o que a seta lhe diz é apenas: esta é a direção certa rumo ao termo que demandas, contempla-me, pois, e ultrapassa-me – e então terás cumprido o sentido da minha mensagem.
De modo análogo, deve o viandante, o leitor, contemplar devidamente, compreender previamente, a direção certa indicada pelas palavras – e depois ultrapassar todas elas e viver intimamente aquilo que leu e compreendeu.
Tudo que está neste livro é, pois, algo preliminar; nada é definitivo. O definitivo vem do leitor, e não do autor. O leitor é que, depois de tomar direção certa, deve realizar o conteúdo da mensagem, dia a dia, ano por ano, a vida inteira.
Depois de todos os ruídos, depois de ler, de ouvir, de pensar – é que vem o grande silêncio dinâmico da realização, a vivência da realidade.
“Quem ouve estas minhas palavras – assim encerra Jesus o Sermão da Montanha – e as realizar, se parece com um homem sensato que construiu sua casa sobre rocha; desabaram aguaceiros, transbordaram os rios, sopraram os vendavais e deram de rijo contra essa casa, mas ela não caiu, porque estava construída sobre rocha. Aquele, porém, que ouve estas minhas palavras e não as realiza, parece-se com um homem insensato que construiu sua casa sobre areia; desabaram aguaceiros, transbordaram os rios, sopraram os vendavais e deram de rijo contra essa casa e ela caiu – e foi grande a sua queda”.
A diferença entre o homem sensato e o insensato não está, pois, em terem ouvido ou não ouvido as palavras da verdade; mas está no fato de ambos terem ouvido e um só ter realizado a verdade das palavras em sua própria vida.
Amigo leitor: lê, ouve – e realiza a verdade das Beatitudes, e serás feliz, aqui e por toda a parte.