sábado, 4 de outubro de 2008

A REDE E SEU CONTEÚDO (Mt 13, 47 ss)

O DESTINO FINAL DE CADA HOMEM É O RESULTADO DO SEU LIVRE ARBÍTRIO

“O Reino dos Céus é semelhante a uma rede, que foi lançada ao mar e apanhou coisas de todo o gênero. Quando cheia, os homens puxaram-na à praia e, sentando-se, recolheram as coisas mais belas em vasos e deitaram fora as feias. Assim acontecerá também na consumação dos tempos: sairão os mensageiros e separarão os maus do meio dos justos, lançando-os à fornalha de fogo; aí haverá choro e ranger de dentes”.
O texto grego do primeiro século não fala em peixes, mas refere-se a “coisas belas” (kalá) e “coisas feias” (saprá); mas a Vulgata Latina diz “peixes” e os qualifica como “bons e maus”.
À luz da sabedoria das parábolas, haverá uma separação final entre os maus e os justos. É o que se depreende desta parábola, bem como da do joio no meio do trigo e de outros textos do Evangelho.
Durante todo o período evolutivo aqui na terra, e, provavelmente alhures, há uma inextricável promiscuidade entre bons e maus.
Mas, afinal de contas, quem é bom e quem é mau?
Se não houvesse uma diferença radical entre bons e maus, não poderia haver vida eterna para uns e morte eterna para outros, como o Evangelho afirma repetidas vezes.
Aqui na terra, certos grupos espiritualistas declaram bons os que observam determinados cânones estabelecidos por esses grupos, e, consideram maus os que não obedecem a essas regras.
Esse critério, porém, é muito relativo e mutável, e não pode afetar o destino definitivo do ser humano.
Outros consideram bons os que fazem bem a seus semelhantes, e maus os outros. Nem este critério atinge o íntimo quê do ser humano. Podemos fazer bem aos outros sem sermos bons nós mesmos. Podemos até fazer bem por vaidade, ostentação, egoísmo e outros motivos alheios ao verdadeiro ser-bom.
Muitos são beneficientes, não pelos motivos negativos acima indicados, mas por motivos positivos; e identificam o fazer-bem com ser-bom.
Entretanto, por mais estranho que pareça, simples atos ou fatos externos não representam necessariamente valores internos; são coisas em si neutras; nenhum ato ou fato é intrinsecamente bom ou mau. O que lhes dá valor ou desvalor é uma atitude interna creada pelo livre arbítrio do homem. É unicamente a realidade do Ser que determina o caráter do Agir. É essa atitude interna do Ser que pode ser boa ou má. O Agir é um transbordamento do Ser.
O Ser é do Eu central, O Agir é do ego periférico.
O Ser é a Essência ou Fonte, o Agir é Existência ou Canal.
Neste sentido dizia Jesus: “A árvore boa produz frutos bons, a árvore má produz frutos maus; é pelos frutos que se conhece a árvore”.
Da interna atitude do ser-bom brotam os atos externos do fazer bem, atos que, neste caso, são eticamente bons, e não apenas moralmente louváveis. Embora a linguagem comum identifique a ética com a moral, em terminologia de precisão filosófica distinguimos esta daquela.
Atos são eticamente bons quando são o transbordamento espontâneo de uma atitude realmente boa – e essa atitude consiste numa harmonia da consciência individual com a Consciência Universal, que se pode chamar Deus ou Divindade. Por outro lado, mau é um ato que nasce de uma atitude má, isto é, da desarmonia da consciência individual com a Consciência Universal.
Atos externamente benéficos são compatíveis com uma atitude internamente má, ou então neutra. Esses atos benéficos não provam necessariamente o ser-bom do seu autor. Nem todos os atos externamente morais são internamente éticos. A atitude determina os atos – mas os atos não determinam a atitude.
Neste sentido diz Einstein: “Do mundo dos fatos não conduz nenhum caminho ao mundo dos valores, porque estes vêm de outra região”.
Fato é ato, valor é atitude. Valor ou atitude é creação do livre arbítrio. Onde não há livre arbítrio não há valor nem atitude.
Atos externos, benéficos, sem atitude interna, boa, podem ser morais, mas não são éticos. A ética, como dissemos, é um transbordamento da mística, e a mística consiste numa harmonia da consciência humana com a consciência divina. Um homem internamente mau, desarmonizado com Deus, pode ser externamente beneficente, benfeitor da humanidade. Simples moralidade não prova a mística, mas toda a mística se revela em ética. A moral é um arranjo artificial de ego para ego, mas a ética é um transbordamento natural e irresistível da mística, é o extravasamento espontâneo de uma plenitude interior, assim como o fruto é a manifestação da exuberante vitalidade da árvore. Uma laranja que não nasceu da laranjeira é uma laranja artificial, fictícia, uma pseudo-laranja (moralidade); somente uma laranja nascida da laranjeira, é uma laranja verdadeira (ética).
Nenhum homem, com toda a sua ciência e técnica, pode fazer uma laranja verdadeira; só a laranjeira (mística) pode produzir de dentro de sua própria alma, da Vida, e a Vida é Deus.
A mística é o ser-bom.
A ética é o fazer-bem nascido do ser-bom.

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Voltando ao nosso ponto de partida, o homem bom é aquele que tem experiência na Infinita Realidade, que vive e age em perfeita harmonia com essa consciência divina; o homem que age eticamente em conseqüência da sua experiência mística.
A parábola da rede e seu conteúdo afirma uma separação final e definitiva entre os bons e os maus, entre os que são internamente bons e agem externamente de acordo com sua consciência. O homem pode e deve tornar-se internamente bom; é esta a sua razão-de-ser aqui na terra; e, como transbordamento desse seu ser-bom em Deus, deve fazer bem aos homens.
Ser-bom (mística) é fazer-bem (ética) – é esta a finalidade do homem aqui na terra e alhures. Quem assim é e assim age entra na vida eterna – mas quem não é assim e não age assim sucumbe à morte eterna. A morte eterna é a extinção da sua individualidade, a sua desintegração por falta de realização.
O período para essa integração ou realização do homem não são apenas os poucos decênios da sua vida terrestre, mas o ciclo total da sua existência, “nas muitas moradas em casa do Pai celeste”, ciclo que pode abranger milhares e milhões de anos. Mas, segundo as imutáveis leis cósmicas, quem não se realiza se desrealiza, se extingue.
O homem não é imortal, mas é imortalizável.
Quem pode imortalizar-se deve imortalizar-se; e quem pode e deve e não faz crea débito, e todo débito gera sofrimento.
Neste sentido diz o Mestre: “Eu vim para que os homens não pereçam, mas tenham a vida eterna... Quem tiver fidelidade a mim não morrerá, e ainda que tenha morrido (fisicamente) viverá para todo o sempre”.
A parábola da rede proclama a possibilidade da vida eterna e a possibilidade da morte eterna. Compete ao livre arbítrio do homem escolher entre essas duas alternativas: realização – ou desrealização.

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A vida eterna não é uma dissolução do homem no Todo, como ensina a ala esquerda do budismo, mas é uma integração do indivíduo no Todo, como defende a ala direita do budismo, de acordo com o Evangelho do Cristo.
Quem se dissolve, deixa de existir – quem se integra continua a existir.
A Vida Universal não “existe”, ela “é”. A vida individual continua a existir quando se integra no Todo, mas deixa de existir (embora continue a ser) quando não se integra, mas se dissolve no Todo. Aqui na terra, é o homem a única creatura que pode continuar a existir individualmente no Todo Universal; as outras creaturas, quando morrem, deixam de existir individualmente, porque o seu “vivo individual” se dissolve na Vida Universal.