quarta-feira, 8 de outubro de 2008

1 – BEM-AVENTURADOS OS POBRES PELO ESPÍRITO – PORQUE DELES É O REINO DOS CÉUS

Quem é pobre pelo espírito?
Quem é bem-aventurado, feliz?
Que é o Reino dos Céus?
Durante quase 20 séculos se têm discutido as palavras “ptóchói to pnéumati” como está no original grego do primeiro século, ou “pauperes spiritu”, como lemos na tradução latina. E as interpretações dessas palavras têm sido as mais diversas.
Alguns chegaram ao absurdo de traduzir os “pobres de espírito”, proclamando felizes os que têm pouco espírito, os que são pobres, deficientes de espírito, os imbecis e idiotas. Neste caso, o próprio Jesus não faria parte dos bem-aventurados, e dele não seria o Reino dos Céus, porque não era pobre de espírito nesse sentido, mas sim rico e riquíssimo, quer se entenda por espírito a faculdade espiritual, quer a faculdade intelectual.
Mas os que o Mestre chamou felizes são os que são pobres pela livre escolha do seu próprio espírito, do seu livre arbítrio; não os que são compulsoriamente pobres, que são milhões, e talvez infelizes, mas os que, podendo possuir todas as riquezas da terra, se sentem tão ricos dos bens espirituais que voluntariamente se desapegaram dos bens materiais, usando apenas o necessário para sua manutenção física.
Também, que ia fazer um milionário espiritual com essas pobres riquezas materiais? Como ia um homem espiritualmente adulto ocupar-se com as bonecas de celulóide ou outra matéria com que se divertem as crianças num jardim de infância? O rico de espírito não sabe como brincar com essas bonecas dos ricos da matéria; a sua mentalidade espiritualmente adulta não acha suficiente ponto de contacto com esses brinquedos que encantam os espiritualmente infantes.
Disse alguém: “É tão difícil para um sábio adquirir riquezas como é difícil para um rico adquirir sabedoria”.
Muitos pensam que, para não dar importância aos bens materiais, deva o homem ser muito virtuoso. Não é bem exato. Pode o homem virtuoso renunciar aos bens materiais e não ser sábio nem feliz. A verdadeira renúncia não vem da virtuosidade, mas sim da sabedoria, da compreensão da verdade. Pode a virtuosidade, em certos casos, ser um preliminar para a sabedoria, mas não é a própria sabedoria. Saber quer dizer saborear, tomar o sabor de um alimento e senti-lo como saboroso. Mas, para o homem meramente virtuoso, pode a renúncia ter sabor amargo, pode ser “caminho estreito e porta apertada”; somente para o sábio, o sapiente, é a renúncia “jugo suave e peso leve”.
Pode alguém renunciar por dever, e até por querer – e é um homem virtuoso.
Mas o verdadeiro sábio renuncia por compreender, por saber – e saboreia a verdadeira felicidade.
O dever e o querer do virtuoso são atos de boa vontade do homem-ego – mas o compreender do sábio é uma atitude da razão espiritual, do Eu divino no homem.
Virtude vem de “virtus”, que em latim, quer dizer força; o virtuoso age em virtude de uma obrigação, de compulsão moral; ele se sente como um escravo, como um bom escravo – “eu devo renunciar”. Ele renuncia sob a pressão de um doloroso e maldito tu deves. Age como um bom escravo – não age como um homem livre, porque não compreende a verdade, a verdade sobre si mesmo; identifica-se ainda com o seu ego, com o seu ego virtuoso, de boa vontade. A verdade é o único poder libertador: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. A compreensão da verdade é a única força que realmente liberta o homem. Quem age sem compreender pode agir virtualmente, mas não age sabiamente.
Sabedoria, ou sapiência, não é outra coisa senão a compreensão da verdade libertadora.
Quem se identifica ainda com o seu ego, mesmo com um ego virtuoso, age virtuosamente, mas não age livremente.
Somente quem, pelo autoconhecimento da mística, se identifica com o seu Eu divino, esse compreende a verdade sobre si mesmo, esse age com sabedoria, age livremente – e este é realmente feliz. O sábio saboreia a deliciosa verdade sobre si mesmo, saboreia que “eu e o Pai somos um”, que “eu sou a luz do mundo”, que “o Reino de Deus está dentro de mim”, e age livre e deliciosamente à luz desta compreensão da verdade que o libertou, inclusive da virtuosidade.
“Por Moisés foi dada a lei – pelo Cristo veio a verdade e veio a graça”.
O homem virtuoso é um bom discípulo de Moisés, porque age sob o signo do dever – tu deves fazer isto, tu não deves fazer aquilo. Ele age como escravo do dever.
O homem sábio é discípulo do Cristo, age em nome da verdade e da graça, age à luz do compreender.
A lei escraviza.
A verdade e a graça libertam.
Feliz, realmente bem-aventurado, é somente aquele que renunciou aos bens materiais por sapiência, pelo saboreamento da verdade sobre si mesmo, e esta renúncia por compreensão nunca é dolorosa, mas indizivelmente deliciosa.
O homem virtuoso sofre a sua renúncia – o homem sábio saboreia a sua renúncia.
Renunciar é, para o sábio, para o compreendedor da verdade, para o autoconhecedor, uma afirmação de força e poder, de entusiasmo e plenitude, da “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”.
Por isto, o homem que renunciou por sabedoria e compreensão nunca se sente como se fosse um herói, algum super-homem, alguma exceção da regra; sente a sua renúncia como algo natural e evidente. O apego aos bens materiais seria para ele desnatural. A natureza toda age com leveza e facilidade; segue sempre o caminho de menor esforço, como diz Einstein. A natureza não conhece virtuosidade, compulsão – ela age sempre com silêncio e naturalidade, porque é inconscientemente sábia, regida pela suprema sabedoria cósmica, que nada sabe de esforço, de dificuldade ou sacrificialidade.
Enquanto o homem se acha na escola primária da lei, soletrando o abc do dever, pode ele ser vicioso ou virtuoso, não fazer ou fazer dificilmente o que deve; mas quando ingressa na universidade da verdade e da graça, entra ele na zona do compreender, da sapiência e do saboreamento da verdade.
Para os principiantes é necessário o “caminho estreito e a porta apertada” da virtuosidade do dever.
Os finalizantes, porém, só conhecem “o jugo suave e peso leve” da sabedoria e compreensão.
Aqueles andam ainda “aflitos e sobrecarregados”, com sua virtuosidade – mas estes acharam “descanso para sua alma”, na sabedoria da compreensão.
Os pobres pelo espírito são os que desapegaram interiormente, e, quanto possível também exteriormente, dos bens materiais, mentais e emocionais, de toda a bagagem do velho ego, não em virtude de um maldito dever, mas à luz de um bendito compreender. Estes são os felizardos, os realmente felizes – porque deles é o Reino dos Céus.
“É” e não apenas “será”. Esses saboreiam, aqui e agora, o Reino dos Céus que está conscientemente dentro deles. Não esperam um céu só depois da morte, mas vivem agora mesmo, aqui e agora, no céu da verdade, da liberdade e da felicidade. Superaram o inferno do ego vicioso, de má vontade, e também o purgatório do ego virtuoso de boa vontade e ingressaram no céu do Eu da sabedoria.
O jovem rico do Evangelho era um homem virtuoso, que havia cumprido todos os mandamentos, tudo que devia fazer – mas não era um homem sábio; era um perfeito discípulo de Moisés, pelo cumprimento da lei – mas não chegou a ser um discípulo do Cristo, pela verdade e pela graça. Formado na escola primária do dever, não ingressou na universidade do compreender.
Que me falta ainda? Pergunta ele a Jesus, depois de ter feito tudo o que devia fazer. E o Mestre lhe responde: “Uma coisa te falta ainda”. Nada lhe faltava naquilo que ele devia fazer – tudo lhe faltava no que devia ser. À pergunta “o que devo fazer” o Mestre responde “se queres ser”. Não se trata mais de fazer algo, tratava-se de ser alguém. Só é alguém quem está na verdade do ser, para além de todas as pseudo-verdades do fazer. O fazer algo é necessário, mas somente o ser alguém é suficiente. Aquilo é dos virtuosos – isto é dos sábios.
A suprema sabedoria e felicidade consiste em ser alguém pela compreensão da verdade libertadora.
A auto-realização do reto-agir da ética supõe o autoconhecimento do reto-ser da mística.