quinta-feira, 23 de outubro de 2008

8 – BEM-AVENTURADOS OS QUE SOFREM PERSEGUIÇÃO POR CAUSA DA JUSTIÇA, PORQUE DELES É O REINO DOS CÉUS

O Mestre amplifica esta bem-aventurança, acrescentando: “Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e caluniosamente disserem de vós todo mal, por minha causa; alegrai-vos e exultai, porque grande é a vossa recompensa nos céus”.
Quem lê esta bem-aventurança, e sobretudo o seu acréscimo, do ponto de vista do ego profano, não pode furtar-se à impressão ingrata de que a mensagem do Cristo é visceralmente sadista e escapista. Imagine-se: felizes são os que sofrem perseguição e difamação de toda a espécie porque deles é o Reino dos Céus, aqui e agora, e não apenas no futuro.
Sendo que o Reino dos Céus está dentro do homem, no seu Eu divino consciente e realizado, parece que a auto-realização anda necessariamente incompatível com a realização do ego. Parece que o homem não pode ser espiritualmente bom sem ser ao mesmo tempo mártir e vítima da sua própria espiritualidade. E, para justificar este conceito, vai através de toda a literatura de quase dois mil anos a idéia de que Jesus foi o rei dos sofredores, o homem das dores, o mártir por excelência. Fomos educados na idéia de que não se pode ser feliz no Aquém sem ser infeliz no Além, ou vice-versa; que os que são infelizes na terra serão necessariamente felizes no Céu.
É verdade que Jesus foi o rei dos sofredores?
Os seus sofrimentos, em 33 anos de existência terrestre, não abrangem quinze horas, desde a quinta-feira à noite, até a sexta-feira pelas três horas da tarde. Os seus sofrimentos físicos talvez não cheguem a três horas, desde o meio-dia até às três horas da sexta-feira, quando expirou. E todos estes sofrimentos foram livremente aceitos, antecipadamente: “Não devia então o Cristo sofrer tudo isto para assim entrar em sua glória?”
Será que já existiu sobre a face da terra um homem que vivesse 33 anos e sofresse tão pouco?
Mas... os sofrimentos morais e psíquicos de Jesus? A incompreensão do povo e dos seus próprios discípulos? A traição de Judas, a negação de Pedro e o abandono dos seus discípulos?
E não sabia o Cristo de tudo isto na encarnação? Não sabia ele que a encarnação era um mergulho nas trevas espessas do mundo material e hominal?
Quando se sofre livremente, por amor a um grande ideal, o sofrimento perde o seu mais acervo amargor; realmente amargo é somente o sofrimento quando sofrido estupidamente, à toa, sem se saber porque, sem nenhuma finalidade superior.
Todo sofrimento, físico ou moral, realizado à luz de uma grande missão, de um ideal sublime, é uma doce amargura, é um “jugo suave” e um “peso leve”.
Foi nesse sentido que Jesus proclamou felizes os que sofrem perseguição por causa da verdade, precisamente porque deles é o Reino dos Céus que está no interior de todo homem. Não diz “será”, mas “é” o Reino dos Céus. O Reino dos Céus não jaz em nenhuma região distante e futura; o Reino dos Céus não é objeto de uma aquisição após morte. O Reino dos Céus é a íntima natureza de todo homem. A presença deste Reino é um fato, uma realidade no interior de cada homem. A diferença não está em que o Reino de Deus esteja presente em alguns, e ausente de outros – a diferença está unicamente no fato de terem alguns a consciência da presença desse Reino, e outros viverem na inconsciência dessa presença. para alguns homens o Reino de Deus é ainda “uma luz debaixo do alqueire”, para outros já é “uma luz no alto do candelabro” da sua consciência espiritual.
Os que ainda não conscientizaram a presença da luz, do Reino dentro de si, sofrem como se essa luz, esse Reino, estivessem ausentes, como se tudo fosse treva espessa.
A conscientização da presença da luz do Reino depende da reta ou falsa função do livre arbítrio de cada um.
É experiência geral que o ego, quando está repleto de gozos e satisfações, dificilmente se interessa pelas coisas do seu Eu espiritual. O desejo de algo espiritual só desperta no homem quando lhe faltam os objetos do ego. O homem-ego só conhece os objetivos da vida, mas ignora a sua razão de ser. Enquanto os objetivos da vida estão presentes em abundância, o homem profano procura a sua satisfação e felicidade nesses objetos, e dificilmente descobre a sua razão de ser, que tem que ver com o seu sujeito profundo, com o seu Eu interno.
A parábola dos convidados à festa nupcial, do Evangelho, é uma ilustração típica dessa atitude: os homens profanos, convidados em primeiro lugar,não compareceram à festa nupcial do Reino de Deus, porque um comprou um sítio e tinha de vê-lo e cultivá-lo; outro comprou cinco juntas de bois e tinha de experimentá-los; o terceiro havia casado e tinha festa e baile em casa. Todos eles, de tão satisfeitos com os objetos da vida, não sentiam a fome de uma razão de ser superior. Os seus teres e fazeres eclipsaram totalmente o seu ser. Não atingiram a plenitude espiritual por causa das suas pseudo-plenitudes materiais, que eram as suas grandes vacuidades.
Então, convidou o senhor da festa nupcial, os pobres, os aleijados, os surdos, todos os que não estavam saturados com os objetivos da vida, e estes compreenderam a razão de ser da sua existência superior, e compareceram à solenidade do Reino de Deus, pelo autoconhecimento e pela auto-realização.
A transição da ego-consciência para a Cristo-consciência, implica, quase sempre, em sofrimento, em “caminho estreito e porta apertada”; mas, uma vez conseguida a Cristo-consciência, a vida do homem espiritual pode tornar-se um “jugo suave” e um “peso leve”.
Para os realizandos, a espiritualidade é um sofrimento.
Para os realizados, é um gozo.
A infeliz satisfação do profano deve passar pela feliz insatisfação do místico – a fim de poder, um dia, culminar na feliz satisfação do homem cósmico.
Todos os Mestres da vida espiritual falam a homens profanos, espiritualmente analfabetos, como é o grosso da humanidade. E por isto insistem na necessidade da renúncia, do sacrifício, da abnegação.
Insistem na transição do homem profano para o homem místico – e pouco se referem ao homem cósmico. A pedagogia tem de preceder à metafísica. Se os Mestres mostrassem a compatibilidade da felicidade espiritual com os gozos externos, que aconteceria? A imensa maioria dos profanos se julgaria pertencente à elite dos homens cósmicos; substituiriam a libertação real por uma pseudo libertação ilusória, gozando os prazeres da vida, na ilusão de serem homens cósmicos, de terem já superado o doloroso período ascético-místico.
O profano, sobretudo, quando ignorante, e ainda por cima arrogante, facilmente se convence de que o seu primitivismo espiritual é perfeição e que renúncia, sacrifício, ascese são estágios superados.
O mais difícil dos doentes é aquele que considera como saúde a sua própria enfermidade. Os grandes Mestres sabiam disto, e por isto insistem grandemente na renúncia e no sacrifício: “Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo”. Só depois de renunciar corajosamente a tudo, é que o homem pode possuir tudo sem ser possuído de nada. Mas estes poucos – onde estão?
Albert Schweitzer escreve: “O cristianismo é uma afirmação do mundo que passou pela negação do mundo”.
E Mahatma Gandhi diz: “Homem, renuncia a tudo, entrega tudo a Deus – e depois recebe-o de volta, purificado, das mãos de Deus”.
O homem-ego é incrivelmente insincero consigo mesmo; a expressão bíblica “omnis homo mendax” (todo homem é mentiroso) é pura verdade: o homem tem a inestirpável mania de se iludir a si mesmo, de se julgar auto-realizado, quando nem começou ainda o abc da sua iniciação. Em vez de soletrar o abc e a tabuada na escola primária, procura matricular-se na universidade do espírito.
Em face desse pendor de insinceridade, de mendacidade, de autodecepção, devem os grandes Mestres falar como falam, chamar felizes os que sofrem perseguição e difamação por causa da verdade. Só assim podem eles levar os analfabetos do espírito a aprenderem os rudimentos da espiritualidade.
Ninguém pode passar do primeiro ao terceiro, sem passar pelo segundo. Ninguém pode passar ao mundo da consciência Cristo-cósmica, sem ter passado pelo mundo da mística ascética.
Segundo todos os Mestres, o caminho ascensional passa pelos estágios da purificação, da iluminação e da união. Se o profano impuro não se purificar das suas impurezas, não pode ser iluminado pela mística, nem unido pela consciência cósmica.
É esta a lógica retilínea da libertação pela verdade.
É imensa a legião dos profanos que se julgam cósmicos – porque não passaram ainda pelo noviciado da mística.
Quanto mais severamente o homem passar por esse noviciado místico-ascético, tanto mais esperança tem ele de entrar um dia no mundo glorioso da consciência cósmica do Cristo.
“Bem-aventurados os que sofrem perseguição pela justiça, porque deles é o Reino dos Céus”.