quarta-feira, 8 de outubro de 2008

2 – BEM-AVENTURADOS OS TRISTES, PORQUE ELES SERÃO CONSOLADOS

Quem são esses tristes?
O grego diz “penthountes” que o latim traduziu por “qui lugent” os que estão de luto.
Evidentemente, essa tristeza, esse luto se referem ao ego humano; só ele pode estar triste ou de luto. É experiência geral que, no princípio, o nosso ego fica triste, chora e se veste de luto, quando o Eu divino em nós nasce, porque este não pode nascer sem que aquele morra de algum modo.
É linguagem geral de todos os Mestres espirituais que algo no homem deve morrer para que algo possa nascer. Não há nascimento sem morte. Paulo de Tarso afirma que ele (seu ego) morre todos os dias, para que seu Eu, o seu Cristo interno, possa nascer e viver.
E o próprio Cristo diz: “Se o grão de trigo não morrer ficará estéril, mas, se morrer, produzirá muito fruto”.
Morte e vida são os dois pólos sobre os quais gira toda a existência humana.
Se o ego, convidado a morrer, soubesse que ele não vai morrer realmente, mas mudar de vida e de vivência, não se entristeceria com essa quase-morte. Mas o ego não sabe, por ora, dessa outra espécie de vivência em que vai entrar, e por isto fica triste, chora e se veste de luto. O que o ego tem de mais caro e querido é a sua idolatrada egoidade, tão antiga como a própria humanidade, milhões de anos. E essa egoidade multimilenar na raça humana, tem também alguns decênios na pessoa individual de cada homem. E agora, um Mestre carinhosamente cruel convida esse idolatrado ego a morrer...
É perfeitamente natural, que o ego, se aceitar o convite mortífero, se revista de luto e tristeza. Segue atrás do negro ataúde do seu ego morto, baixa o ego-cadáver ao túmulo, deita umas pasadas de terra fria sobre o esquife, derrama amargas lágrimas sobre os restos mortais do seu ídolo morto e sente-se todo em chaga viva.
Que coisa sobrou ao homem-ego depois que sepultou o seu único ídolo sobre a face da terra?
Por algum tempo, talvez por anos a fio, a vida desse homem não tem mais encantos... Em vão desabrocham flores à beira do caminho... Em vão brilham as estrelas no firmamento noturno da sua vida... A treva é espessa, e as estrelas são longínquas... Em vão procuram os amigos consolar esse morto-vivo... Ele perdeu tudo – e ainda não encontrou nada... A alvorada de uma vida nova não amanheceu ainda para além do ocaso da vida velha que se foi... O crepe escuro do negro ataúde não permite ainda vislumbrar a gaze branca de um berço novo...
E o Mestre tem a coragem de dizer que é feliz o homem que chora sobre o túmulo do seu ego morto... Pode não ser feliz por causa desse luto – mas pode ser feliz a despeito dele. Pode ser feliz por causa de algo que vem depois dessa morte e desse luto – se é que esse homem suspeita ou adivinha esse algo que vem depois.
Aos poucos, percebe esse enlutado que as suas alegrias antigas eram algo profano e triste, e que sua tristeza de agora tem um discreto sabor de alegria, não dessa alegria ruidosa que os profanos chamam alegria, mas, de algo que tem sabor de uma tristeza superficial e duma alegria profunda.
Mas essa alegria do enlutado está numa outra dimensão, está no misterioso anonimato da felicidade. Essa felicidade anônima é tão sagrada que nada tem que ver com as chamadas alegrias dos profanos. É como o misterioso cintilar das estrelas da meia-noite, mais adivinhadas do que conhecidas.
A alegria que o ego enlutado sente é tão sagrada que o homem não ousa falar dela aos seus antigos companheiros ainda não mortos, com medo duma possível profanação ou decepção.
Por isto, esse ego enlutado prefere viver a sós, na sua doce amargura, na sua amarga doçura. Se tiver a sorte de encontrar um sócio de luto, fala com ele a meia voz sobre sua sagrada tristeza, medindo as palavras cautelosamente.
Verifica aos poucos que, por nada deste mundo, trocaria sua tristeza por nenhuma das chamadas alegrias dos profanos. Tem pena dos alegres por não gozarem a querida tristeza de que ele goza.
Um belo dia – ou numa noite feliz – descobre ele que a sua tristeza é apenas a sombra projetada por uma luz misteriosa que nele está e cuja presença ele ignorava. Por amor a essa luz ama também as suas sombras e verifica que é uma sombra luminosa, espécie de sol da meia-noite que ilumina as regiões nórdicas do globo terrestre.
E quando um antigo companheiro de profanidade o convida para aquelas outras “alegrias” repletas de ruídos, esse homem prefere a sua doce amargura a todas as doces doçuras dos inexperientes desse novo mundo que nele despontou.
Uma gotinha dessa felicidade anônima lhe vale mais que toneladas daquele bagaço profano que outrora ele chamava de gozo e prazer.
Esse felizardo enlutado compreende que a “consolação” de que o Nazareno fala não é algo que venha depois da tristeza, mas que é a quintessência dessa mesma tristeza, a alma daquilo que aos inexperientes parece ser tristeza.
Verifica que o Reino dos Céus dessa consolação não é algo como recompensa por essa tristeza, mas é esta própria tristeza vista através de outro prisma, contemplada duma outra perspectiva e dimensão.
Esse homem não espera trocar a sua tristeza por alguma consolação, espera apenas conservar para sempre a sua clarividência e contemplar para sempre a Realidade do Seu Eu verdadeiro para além de todas as facticidades do seu ego ilusório.
Compreendeu, finalmente, que a felicidade não é algo que o homem receba de fora, mas que é ele mesmo essa felicidade, quando conscientiza a sua realidade divina de dentro.
O milionário da felicidade interior não necessita de correr freneticamente no encalço das pequenas moedas dos gozos externos, que os profanos chamam felicidade. Pode abrir mão desses pobres prazeres – e assim ser considerado como triste aos olhos dos sonhadores de sonhos e caçadores de sombras. Quem goza de uma felicidade profunda pode prescindir de gozos superficiais.
A verdadeira felicidade está numa outra dimensão, ignorada dos pobres gozadores. E quando alguém goza de uma profunda felicidade vinda de dentro da alma, pode até encontrar gozo nas pequeninas coisas de fora; não necessita de estímulos violentos para gozar; uma modesta florzinha à beira da estrada; o sorriso de uma criança; o gorgeio de um passarinho; o murmúrio de uma fonte; a fosforescência de um vaga-lume; um nascer ou pôr do sol; o silêncio da floresta ou o ribombar do trovão – tudo dá gozo e prazer a quem encontrou dentro de si a fonte de uma felicidade perene. Os gozos dos profanos, sem base na felicidade interior, sofrem de um mal intrínseco: necessitam de estímulos cada vez mais violentos para serem ainda sentidos e gozados. E, por fim, a possibilidade de gozar fica tão embotada que acaba em total incapacidade de gozar ainda. O próprio gozo progressivamente intensificado produz, por fim, a incapacidade de gozo. O gozo atrofia a gozabilidade – e então o infeliz gozador está maduro para o hospício, para o hospital ou para o cemitério – ou então para um inferno em plena vida.
Toda a física acaba fatalmente em fastio se não tiver um fundo de metafísica.
O felizardo que não baseia a sua felicidade em gozos externos, mas usa esses como simples condimentos e acessórios, pode gozar sempre sem fastio nem náuseas de super-saturação. Pode parecer triste aos olhos dos inexperientes, mas é um homem profundamente feliz dentro de si mesmo.