quinta-feira, 16 de outubro de 2008

5 – BEM-AVENTURADOS OS MISERICORDIOSOS, PORQUE ELES ALCANÇARÃO MISERICÓRDIA

À primeira vista, esta beatitude parece ser puramente moral e filantrópica – e ainda com a agravante de que outros nos façam a mesma misericórdia que a eles fizemos.
Se assim fosse, esta bem-aventurança representaria uma decaída da altura das precedentes. Entretanto, nem o caráter meramente moral nem a índole mercenária de retribuição fazem parte desta beatitude, que está bem à altura das outras, embora a sua índole seja profundamente metafísica e univérsica.
Aliás, os grandes Mestres da humanidade, sobretudo o Cristo, nunca falam duma perspectiva puramente moral, horizontal; falam sempre da perspectiva vertical duma metafísica ontológica e mística, lembrando nascentes que brotam do seio das montanhas e daí derivam para as planícies.
Os ensinamentos dos grandes avatares da humanidade nunca são simples rios ou lagos plácidos nos vales, são sempre poderosas cachoeiras nas alturas. De horizontal a horizontal, não há voltagem, há apenas amperagem; não há ectropia, mas apenas entropia. Mas, como ensina a própria ciência, de nível para nível não há força; a força vem de desnível para nível. Onde não há um fundo de metafísica não há física poderosa; onde falta a mística, a ética se esgota logo em simples moralidade.
Esta beatitude anuncia a grande lei cósmica do dar e do receber, e a íntima interdependência entre estas duas atitudes do homem.
Ninguém pode receber algo para além da sua receptividade, porquanto, como diz o antigo adágio filosófico, “o recebido está no recipiente segundo a capacidade do recipiente”.
E a capacidade do recipiente se alarga ou se estreita segundo a maior ou menor atitude de datividade do doador.
A finalidade desta beatitude não é apenas ética ou moral, como parece à primeira vista; ela é altamente mística. O maior beneficiado não é o receptor da misericórdia, mas sim o doador. Através da sua espontânea e desinteressada datividade, o doador crea em si uma atitude de auto-realização em alto grau, alo-realizando os outros. Suposto, naturalmente, que o doador não vise a nenhuma retribuição por parte dos seus bebeficiados. Qualquer especulação, por mais sutil e secreta, no sentido de ser recompensado por seus benefícios, nulifica totalmente o valor da doação.
Por que?
Porque qualquer idéia de recompensa, seja antes ou depois da morte, é egoísmo. Somente o ego humano pode ter semelhante intenção. O Eu divino no homem, o Pai, o Cristo interno, a Luz do mundo, o Reino de Deus, não esperam recompensa, nem da parte dos homens nem da parte de Deus, uma vez que o Eu, na sua essência, é tudo e não necessita de nada; ele apenas desperta ou conscientiza esse Tudo, que é ele mesmo.
Esta conscientização é feita pelos objetos, mas o sujeito é a fonte.
Somente um pobre mercenário espera ser recompensado, escorado por algo de fora.
Somente um homem incompleto deseja ser compensado.
Somente um pobre doente necessita de ser pensado, como a enfermeira pensa os ferimentos.
Mas o Eu não é mercenário, nem incompleto, nem doente.
Portanto, quem dá misericórdia não espera misericórdia da parte dos homens.
Nem espera misericórdia da parte de Deus; mas, segundo leis eternas, a misericórdia de Deus flui, irresistível e espontaneamente, da Fonte plena para dentro de qualquer canal vazio. Quer o homem o saiba e queira ou não, a plenitude da fonte plenifica infalivelmente a vacuidade dos canais.
Pedi – e recebereis...
Buscai – e achareis...
Batei – e abrir-se-vos-á...
A finalidade do pedir, buscar, bater, não está em Deus, mas no homem. O doador não pode dar nada sem que o receptor possua a necessária receptividade – e essa receptividade é creada pelo homem mediante o pedir, buscar, bater.
O ensinamento dos grandes Mestres nunca visa, em primeiro lugar aos objetos do mundo externo, mas sim ao sujeito do nosso mundo interno.
Muitos homens caritativos e filantrópicos, vêem na sua beneficência o fim primário, ou mesmo único, da sua atividade altruística. Querem, acima de tudo, fazer benefícios; não compreendem que o beneficiado não é o alvo primário da beneficiência, mas sim o benfeitor – naturalmente não o ego-canal, que seria egoísmo, mas o Eu-fonte, que é cristificação.
Muitos se iludem, convencidos de que toda a sua beneficência seja puro transbordamento da sua benevolência mística. Pode a beneficência horizontal servir de meio para intensificar a mística vertical, mas nunca pode ser um fim. O segundo mandamento “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, nunca pode substituir o primeiro e maior de todos os mandamentos “amarás o Senhor, teu Deus, com toda a tua alma, com toda a tua mente, com todo o teu coração e com todas as tuas forças”.
Quando a beneficência se torna um fim em si mesmo, em vez de ser um auxílio, transforma-se num empecilho para auto-realização espiritual.
O Universo é o Uno Infinito que transborda para o Verso dos Finitos.
O homem deve agir assim como o Universo age.
Só pode receber da Fonte do Uno na razão direta que dá aos canais do Verso. Quando cessa a evasão rumo aos homens cessa a invasão da parte de Deus. Quem não dá não recebe.
A medida da recipiência vertical é diretamente proporcional à distribuição dativa na horizontal.
Onde cessa a doação para os lados cessa o recebimento de cima.
Estranhamente, quase todas as igrejas cristãs ensinam a seus filhos que devem praticar o bem aqui na terra, a fim de serem recompensados por Deus no céu, entendendo por “céu” um determinado lugar, em tempos futuros e regiões distantes.
Nesse sentido, os teólogos educam os seus adeptos para uma espécie de egoísmo, embora sublimado e póstumo. Por isto, disse o filósofo Bérgson que as igrejas detestam o egoísmo terrestre, mas recomendam o egoísmo celeste.
Felizes são somente os misericordiosos que nem de Deus esperam recompensa por sua misericórdia, embora não possam abolir nem ignorar o fato de que a plenitude flui infalivelmente para dentro da vacuidade – e essa atitude desinteressada é um total ego-esvaziamento, uma vacuidade de tudo e qualquer conteúdo do ego-humano.
Fazer bem aos outros envolve um grande perigo para o benfeitor, e muitos sucumbem a este perigo.
O fariseu no templo, que dava 10% dos seus haveres para fins religiosos e beneficentes, voltou para casa “não ajustado”; com todas as suas beneficências, estava “desajustado”, porque fazia o bem não como um transbordamento de ser bom, mas como um fim em si mesmo, quiçá até para satisfação de sua vaidade pessoal.
É tão gostoso para o nosso ego fazer estatísticas das suas filantropias; sentir o cálido aperto de mão de um beneficiado; ver o sorriso de uma criança ou as lágrimas de um velhinho em face de um benefício recebido. E o homem se esquece facilmente de que é “servo inútil”, e vai creando em si um complexo de utilidade e utilitarismo.
Tanto o Cristo como Krishna, recomendam a seus discípulos que trabalhem intensamente, mas renunciem a cada momento aos frutos do seu trabalho.
Mas o nosso ego dificilmente compreende essa linguagem dos Mestres. Quando age, sucumbe ao falso-agir, visando em primeiro lugar aos frutos do seu trabalho; outros preferem não-agir, caindo numa total passividade; poucos conseguem as alturas de um reto-agir, trabalhando intensamente em qualquer setor da atividade, não por amor aos frutos do trabalho, nem à recompensa, mas por amor ao Pai, ao Cristo interno, à Luz do mundo, ao Reino de Deus dentro do homem, que deve ser realizado por qualquer atividade do ego.
O homem é aqui na terra o único ser que se pode fazer melhor do que Deus o fez. Disse alguém que Deus creou o homem o menos possível para que ele se possa crear o mais possível.
O homem é o único ser ao mesmo tempo creatura e creador. O seu livre-arbítrio é um poder creador ou destruidor; por ele pode o homem fazer-se bom ou mau.
Não são os atos que o tornam bom ou mau, é a sua atitude interna, produto do seu livre-arbítrio.
Essa atitude é o seu modo-de-ser, a árvore da atitude, da qual brotam os frutos dos atos.
Ser misericordioso é ser-bom, e todo o homem bom faz-o-bem. Do ser-bom há um caminho para o fazer-bem, como de cima as águas fluem para baixo. Mas o simples fazer-o-bem não é prova de ser-bom; pode o homem fazer o bem por outros motivos, até por motivos inéticos, como vaidade e ego-complacência.
Ou, na linguagem de precisão matemática de Einstein: “Do mundo dos fatos (fazer o bem) não conduz nenhum caminho para o mundo dos valores (ser bom); porque os valores vêm de outra região”.
Poderia o grande matemático ter acrescentado: do mundo dos valores há um caminho para o mundo dos fatos; da qualidade de ser bom há um caminho para a quantidade de fazer o bem.
Da benevolência mística conduz um caminho para a beneficência ética.
Da fonte da mística derivam todas as águas para os canais da ética.