quarta-feira, 8 de outubro de 2008

MÍSTICA DAS BEATITUDES – AUTO-RETRATO DA ALMA DE JESUS

TOMANDO PERSPECTIVA

Se o Evangelho é a alma da Bíblia, então as Beatitudes são o coração do Evangelho.
As oito Beatitudes, ou Bem-aventuranças, que formam o início do Sermão da Montanha, são jubilosas exclamações que romperam da transbordante plenitude do espírito do Cristo, após uma noite inteira de comunhão com Deus, como diz o evangelista.
Quase no início da sua vida pública, passou Jesus uma noite toda “em oração com Deus”, em êxtase, em samadhi. A alma do Nazareno estava mergulhada no oceano imenso da Divindade. E, quando, de madrugada, emergiu desse banho de luz e força, de amor e felicidade, foi tão irresistível o entusiasmo de que estava repleto, que não pode conter em si a divina plenitude, e, como o sol nascente, irradiou os seus fulgores sobre os discípulos e o povo que lhe correram ao encontro, sentindo ou adivinhando algo de extraordinário.
Desceu do monte, em cujo cimo havia passado a noite em mergulho místico, e, chegando a uma esplanada e vendo a fome e a sede do povo, sentou-se numa colina, e exclamou oito Bem-aventurados!... Bem-aventurados!...
As Beatitudes não são ensinamentos, a bem dizer; são experiências pessoais da vida íntima de Jesus que romperam as válvulas de retenção da sua alma e se espraiaram, irresistivelmente, sobre a humanidade de todos os tempos e países. Toda a plenitude, quando atinge o clímax da sua abundância, tende a difundir-se em derredor. Toda a explosão supõe uma implosão, e a implosão mística de Jesus havia atingido o seu máximo nessa noite, nas colinas de Kurun Hattin, ao sudoeste do lago da Galiléia.
As Beatitudes são o auto-retrato de Jesus.
Por isto as Bem-aventuranças não devem ser lidas ou ouvidas senão numa atitude de intensa espiritualidade. Quem lê ou ouve estas exclamações de entusiasmo místico num estado de profanidade, ou mesmo de mera intelectualidade, nada sentirá da sua sacralidade; possivelmente, as achará absurdas e revoltantes. Imagine-se: chamar felizes os pobres, os sofredores, os injustiçados, os famintos e sedentos, os que sofrem perseguição e difamação! Onde se ouviu maior paradoxo, mais revoltante sadismo, mais acerba ironia! Realmente, do plano horizontal do homem-ego, ninguém pode nem deve ler estas palavras, que brotaram das luminosas profundezas do homem-Eu, do homem-crístico, e só podem ser compreendidas e saboreadas dessa perspectiva de experiência mística da qual brotaram.
Não são palavras ego-pensadas, são experiências Cristo-vividas. Só quem pode dizer com Paulo de Tarso “já não sou eu que vivo – o Cristo é que vive em mim”, só esse pode saborear devidamente as Beatitudes. O homem ego-vivente, ficará apático, ou até revoltado, em face de tamanha sublimidade.
Quanto menos o leitor for ego-agente e quanto mais for Cristo-agido, tanto melhor compreenderá a sapiência dessa divina loucura.
É, pois, necessário que o leitor, antes de ler as Beatitudes, se ponha no mesmo ambiente interior em que elas foram vividas naquela bendita madrugada. Enquanto o homem não estiver devidamente sintonizado com a alma divina do Universo, com o Cristo-cósmico, não estará em condições de assimilar as lucerias e calorias das Bem-aventuranças do Cristo.
Aliás, esta sintonização Cristo-cósmica é o requisito para a compreensão de toda e qualquer palavra de Jesus que os Evangelhos nos conservaram. O que o grosso da humanidade entende por “meditação”, pouco ou nada tem que ver com essa sintonização crística. Quem pensa e analisa não entrou na verdadeira meditação, durante a qual o homem se deve calar, para que Deus lhe possa falar.
Quando o homem fala – Deus se cala.
Quando o homem pensa – Deus se dispensa.
Quando o homem deseja algo – Deus se eclipsa.
A verdadeira meditação é simplesmente um total esvaziamento de todo e qualquer conteúdo do ego-humano, para que a plenitude divina possa fluir para dentro dessa vacuidade humana. A fonte da plenitude plenifica somente a vacuidade. O homem ego-pleno não pode ser teo-plenificado, ou, em linguagem bíblica: “Deus resiste aos soberbos (ego-plenos) e dá sua graça aos humildes (ego-vácuos)”.
Neste mesmo sentido disse o Mestre:
“Eu te agradeço, meu pai, que revelaste estas coisas aos simples e pequeninos e as ocultaste aos eruditos... Quem não receber o Reino de Deus como uma criança não entrará nele”.
Muitos não conseguem reduzir-se a uma atitude de não pensar nada, e ficar ao mesmo tempo plenamente conscientes; quando não pensam, estão em perigo de cair em transe, na auto-hipnose, no sono, e nada resolvem. Mas quando o homem desce ao nadir do pensamento e sobe ao zênite da consciência, então está em verdadeira meditação, ou contemplação, e só então pode compreender espiritualmente e saborear deliciosamente o verdadeiro sentido das Beatitudes do Cristo.

* * *

Nas seguintes páginas, ao que parece, teremos de contradizer a tudo que acabamos de dizer: temos de falar, pensar, analisar as palavras de Jesus – que só deviam ser vividas e saboreadas em silêncio.
Prevenimos, por isto, o leitor de que aquilo que vamos dizer é a alma, mas apenas o corpo das Bem-aventuranças. Poremos apenas umas setas à beira da estrada; mas estas devem ser contempladas e depois abandonadas. Se o viandante se agarrar a um desses marcos à beira do caminho, ou até o arrancar e levar consigo, não cumpre a mensagem secreta do marco, que é transcendente, e não imanente. A mensagem da seta não é o aqui mas o além. O viandante deve saber que a seta não quer dizer “aqui é a cidade X” que ele demanda, mas ela é além, digamos daqui a 10 ou 100 km; o que a seta lhe diz é apenas: esta é a direção certa rumo ao termo que demandas, contempla-me, pois, e ultrapassa-me – e então terás cumprido o sentido da minha mensagem.
De modo análogo, deve o viandante, o leitor, contemplar devidamente, compreender previamente, a direção certa indicada pelas palavras – e depois ultrapassar todas elas e viver intimamente aquilo que leu e compreendeu.
Tudo que está neste livro é, pois, algo preliminar; nada é definitivo. O definitivo vem do leitor, e não do autor. O leitor é que, depois de tomar direção certa, deve realizar o conteúdo da mensagem, dia a dia, ano por ano, a vida inteira.
Depois de todos os ruídos, depois de ler, de ouvir, de pensar – é que vem o grande silêncio dinâmico da realização, a vivência da realidade.
“Quem ouve estas minhas palavras – assim encerra Jesus o Sermão da Montanha – e as realizar, se parece com um homem sensato que construiu sua casa sobre rocha; desabaram aguaceiros, transbordaram os rios, sopraram os vendavais e deram de rijo contra essa casa, mas ela não caiu, porque estava construída sobre rocha. Aquele, porém, que ouve estas minhas palavras e não as realiza, parece-se com um homem insensato que construiu sua casa sobre areia; desabaram aguaceiros, transbordaram os rios, sopraram os vendavais e deram de rijo contra essa casa e ela caiu – e foi grande a sua queda”.
A diferença entre o homem sensato e o insensato não está, pois, em terem ouvido ou não ouvido as palavras da verdade; mas está no fato de ambos terem ouvido e um só ter realizado a verdade das palavras em sua própria vida.
Amigo leitor: lê, ouve – e realiza a verdade das Beatitudes, e serás feliz, aqui e por toda a parte.