domingo, 26 de outubro de 2008

“VÓS SOIS O SAL DA TERRA”

O sal é, por via de regra, identificado com o nosso sal de cozinha, cloreto de sódio, que usamos para dois fins: para dar sabor aos alimentos, e para preservá-los da putrefação. Neste sentido popular, a idéia do sal tem ótima aplicação ao mundo espiritual.
O discípulo do Cristo tem de fazer, na zona espiritual o que o sal faz no mundo material: dar sabor à vida – e preservá-la da putrefação.
Sem o condimento do sal, os alimentos sai insípidos, ou insulsos – e não é isto mesmo que acontece no mundo superior? O profano, que nada sabe do condimento da espiritualidade, leva uma vida insípida; mas, como ele ignora a sua própria insipidez, nem jamais saboreou alimento espiritual, tolera os seus alimentos cotidianos insulsos. E, quando a insipidez se lhe torna insuportável, procura esquecê-la por algum tempo, narcotizando-se com toda a espécie de anestésicos e analgésicos, como são geralmente dinheiro, sexo e divertimentos. Praticamente, nenhum profano sabe de outra coisa que não se possa reduzir de algum modo a essa trindade egóica. Pratica esses escapismos temporários com a intenção de fugir da insipidez da vida; mas, depois de voltar a si, enfrenta novamente, com redobrada violência, a mesma insipidez. Na juventude é sobretudo o escapismo para a zona do sexo, da luxúria em todas as suas variantes. Para isto, não necessita ele de muito dinheiro; basta ter um corpo são e normal, e o caminho para essa espécie de narcótico está aberto.
Na idade madura, é, sobretudo o dinheiro, em todas as suas formas, que serve para derivativo: indústria, comércio, negócios, especulações cambiais, etc.
E, em todas as idades servem os divertimentos e as diversões, esportes, viagens, que hoje em dia, têm aspectos tão variados que parecem até satisfazer os mais avançados anseios do homem profano.
Alguns sabem sublimar o seu alimento por meio de condimentos mais sutis, como sejam a ciência e a arte. Sobretudo a arte serve, não raro, de traço de união entre a física e a metafísica.
Para o homem de sorte, esses derivativos substituem, muitas vezes, a ignota zona da metafísica e da mística. Mas, quando os revezes da fortuna e o estado de saúde privam o homem de sentir plena satisfação nesses ídolos do ego – então se acha ele numa dolorosa encruzilhada da sua existência. O sofrimento pode ser uma espada de dois gumes: pode ser o início da sublimação da vida humana – e pode ser também o início do seu total desespero. Se o homem, durante meio século de vida totalmente profana, vivida na dimensão do dinheiro, do sexo e dos divertimentos, se vir subitamente privado desses seus ídolos tradicionais, dificilmente enveredará, de improviso, pelo caminho da sublimação espiritual; acabará, provavelmente, no desânimo, no desespero, possivelmente no manicômio, no hospital, quiçá no suicídio – em todo caso num inferno em plena vida.
É sumamente perigoso, mesmo em estado de plena saúde e prosperidade, firmar-se com ambos os pés unicamente na base da física, sem nenhum apoio na metafísica.
Somente homens de natureza medíocre encontram plena satisfação, como eles pensam, na zona da física sem anseios metafísicos.
Caracteres dotados de maior voltagem vital, fazem a experiência seguinte: quanto mais favoráveis são as circunstâncias externas da sua vida, maior e mais intensa é a nostalgia da substância interna. Não é necessário nenhum terremoto de fora para essas pessoas sentirem a sua inquietude metafísica; parece até que a própria plenitude física lhes faz sentir mais conscientemente a sua vacuidade metafísica. A harmonia da sua vida material, emocional e social lhes faz sentir ainda mais a desarmonia do seu mundo espiritual.
Neste ambiente, deve Santo Agostinho ter escrito as tão citadas palavras: “Fizeste-nos para ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração até que encontre quietação em ti”.
Poucos homens devem ter levado uma vida externa tão feliz como esse genial africano; mais de meio século de prosperidade, de saúde, de inteligência brilhante, de glórias, de admiração e esse homem, nadando num oceano de prosperidade humana, anseia por uma felicidade longínqua, desconhecida, porém, intensamente farejada – e sofrida.
Outro homem, Leão Tolstoi, foi outro felizardo profundamente insatisfeito: fazendeiro riquíssimo, dono de uma fortuna imensa, pai de nove filhos, feliz como esposo e pai, como escritor, poeta e artista, alvo de imensa admiração do mundo – sente-se ele tão infeliz na sua felicidade, que resolve fugir da maldição da sua prosperidade, como ele mesmo diz. Desaparece... mas a polícia o reconduz para casa e o obriga a viver, por algum tempo, no meio da família.
Tolstoi, porém, não tolera a sua chamada felicidade; numa fria noite de inverno, quase aos oitenta anos de vida, foge pela segunda vez, desta vez em companhia da filha mais nova Alexandra, que parece ter participado da nostalgia mística do pai. Apenas com a roupa do corpo, adoece no trem e morre numa pequena estação ferroviária em plena mata; antes de dar o último suspiro, transmite à filha a sua última vontade, proibindo qualquer discurso, música ou pompa ao pé do seu túmulo.
Nem sempre, dinheiro, sexo e divertimentos roubam ao homem a visão duma felicidade transcendente; desse roubo só são vítimas os caracteres medíocres, os homens-minhocas, satisfeitos com o seu húmus no fundo da terra, e incapazes de invejarem os vôos das águias nas luminosas alturas do céu.
Quando o Mestre diz aos seus discípulos que eles são o sal da terra, faz alusão a esse condimento de espiritualidade, destinado a tornar saborosas todas as materialidades da vida terrestre. Não lhes recomenda comer sal puro, mas sim condimentar todos os alimentos da vida física com o sabor da metafísica e da mística, que ele designa geralmente com a palavra o “Reino de Deus”.
Mas, o Nazareno faz aos seus discípulos uma advertência muito séria: se o próprio sal da espiritualidade perder a sua salinidade, o seu poder de salgar, fica inútil e para nada mais serve senão para ser lançado fora e pisado aos pés dos transeuntes.
Quando o homem perde a consciência da sua espiritualidade, a consciência do seu Eu divino, como poderia ele ainda espiritualizar a sua vida material? Como poderia o Eu divino condimentar as profanidades do ego humano, se ele perder a consciência de que “eu e o Pai somos um”?
E como conseguirá o homem preservar esta consciência se, no meio deste dilúvio diário de profanidades e profanações, não se recolher muitas vezes à sacralidade da interiorização, da sintonização Crística?
Esse homem perdeu a sua razão de ser, abriu falência. É lançado fora, mesmo na vida presente e pisado aos pés. Pode ser que os seus companheiros de profanidade o estimem e respeitem aparentemente; mas, o que eles respeitam é antes o que esse homem tem, não o que ele é; respeitam algo que ele possui, dinheiro, sua posição social, seu prestígio – não respeitam o alguém que ele devia ser, mas não é. Em última análise só se pode respeitar um valor e não uma coisa. Mas o homem que se desvaloriza e coisifica deixou de ser alguém e se tornou apenas algo.
O sal, além de dar sabor aos alimentos, também os preserva da putrefação. Mas quem é putrefato não pode salvar outro da putrefação, da corrupção.
Hoje em dia, quem não anda na moda não é moderno, e, como o homem profano, acima de tudo, quer ser moderno, tem de acompanhar a moda, por mais putrefata que ela seja. A moda, porém, é quase sempre não ter modos, ser escravo da opinião pública, não se guiar pela consciência própria, mas obedecer a convenções alheias. Não ser moderno exige grande firmeza de caráter e independência de espírito.
Hoje em dia, é quase impossível ter consciência própria. A publicidade social e comercial é tão requintadamente sutil e contagiante, que nenhum homem medíocre resiste ao impacto da propaganda; somente uns poucos monólitos conseguem erguer-se, incólumes, do meio do vasto areal da escravidão universal da sociedade.
Para não ser moderno é necessário ser herói.
Para ser alguém é preciso ter coragem de renunciar a algo – e muitas vezes esse algo é quase tudo o que a sociedade preza.
Para poder funcionar como sal da sociedade, para lhe dar sabor e preservá-la da corrupção, é necessário, não raro, parecer anti-social, não ser um passivo refletor da opinião pública, mas sim um ativo diretor dela.
O homem-sal tem de ter a coragem de ser antipático à sociedade – por amor à sociedade, tem de contrariá-la, para salvá-la.
O homem espiritual se guia por princípios – o homem material só é dominado por fins.
O homem fraco é derrotado por fins egoísticos – o homem forte é orientado por princípios espirituais.
Por isto, o homem de princípios não terá fim, é eterno, porque está sempre no princípio da sua vida e carreira.
Os princípios preservam o homem, como o sal.
Os fins corrompem o homem, como se corrompem os alimentos sem sal.
“Vós sois o sal da terra”...