segunda-feira, 20 de outubro de 2008

7 – BEM-AVENTURADOS OS PACIFICADORES, PORQUE ELES SERÃO CHAMADOS FILHOS DE DEUS

Paz...
Há quase dois mil anos que os arautos de Deus cantaram sobre o estábulo de Belém: “Paz na terra aos homens de boa vontade”.
E alguns decênios depois, em vésperas de sua morte, disse o Nazareno aos seus discípulos: “Eu vos dou a paz, eu vos deixo a minha paz; não a dou como o mundo a dá, para que minha alegria seja em vós, seja perfeita a vossa alegria, e nunca ninguém tire de vós a vossa alegria”.
Depois da sua ressurreição, Jesus saúda os seus discípulos, invariavelmente, com as palavras: “Salem aleikum”, a paz seja convosco.
Entretanto, a história do cristianismo, que nasceu sob o signo da paz, é uma história de guerras e de armistícios, mas não de paz. O armistício é uma pseudo-paz, uma trégua entre duas guerras.
O nosso ego-humano nada sabe de paz, só conhece a guerra – a guerra quente nos campos de batalha, ou então a guerra fria do armistício, nos parlamentos. Por isto dizia o Mestre: “Eu vos dou a paz, mas não a dou como o mundo a dá”, em forma precária de pseudo-paz ou armistício.
Aliás, quando o ego nasceu, como refere o Gênesis, já nasceu beligerante, lutando para os dois lados, guerreando o mundo de Deus e o Deus do mundo: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre teu descendente e o descendente dela (o Cristo); ele te esmagará a cabeça e tu armarás cilada ao calcanhar dele!”
Esta é a guerra do anticristo contra o Eu crístico.
E também entrou em guerra contra o mundo natural: “Comerás o teu pão no suor do teu rosto... num mundo coberto de espinhos e abrolhos”.
E que fez o ego da nossa personalidade até hoje senão combater Deus e a natureza? Nunca a humanidade gozou de um único ano de paz verdadeira.
Bem dizia a Bhagavad Gita: “O ego é o pior inimigo do Eu, mas o Eu é o melhor amigo do ego”.
Para que haja paz entre a personalidade humana do ego e a individualidade crística do Eu, deve o homem elevar-se à altura do Cristo, porque este não pode descer às baixadas do ego.
A paz social, nacional e internacional depende da paz individual. Enquanto o homem não fizer as pazes consigo mesmo, não pode ter paz com os outros. Todo e qualquer tratado de paz no mundo político-social acabará infalivelmente numa guerra quente, nos campos de batalha, ou então numa guerra fria nos parlamentos. As leis cósmicas são de uma lógica retilínea inexorável: nada há no mundo social que antes não tenha havido no mundo individual.
Sempre de novo, através de séculos e milênios, o homem tenta subornar as leis cósmicas, que são a ordem de Deus; sempre de novo tenta fazer o segundo antes do primeiro – e o círculo vicioso continua sem fim.
O homem tem de pacificar-se a si mesmo, antes de poder pacificar os outros.
“Bem-aventurados os pacificadores...”
A tradução habitual diz “pacíficos”. Embora esta palavra seja certa em si, hoje em dia é ela mal compreendida. Pacífico é, para o homem comum, um homem calmo, passivo, mais ou menos inerte.
Mas o termo latino é derivado de “pacem facere”, fazer a paz, bem como a expressão grega “eirene-poiuntes”, deriva de “eirene” (paz) e “poieo” (fazer). O sentido desta palavra é, sobretudo, ativo e dinâmico, e não estaticamente passivo. Feliz é o homem que faz ou realiza a paz, e não apenas vive ou vegeta pacificamente.
A paz não representa um estado de passividade e inércia, mas é uma conquista, uma vitória, altamente dinâmica. Pode o homem viver numa espécie de paz comparável à dos cemitérios, onde ninguém briga com os outros, mas todos estão em paz, por falta devida e vitalidade. Mas não é esta paz desejável; a paz verdadeira é uma bonança que segue a uma grande tempestade, é a tranqüilidade final da sapiência, depois duma longa tormenta de dúvidas e incertezas.
Durante a última guerra mundial apareceu numa revista uma ilustração satírica: um enorme campo cheio de cruzes, uma ao lado da outra, um cemitério onde tinham sido sepultados milhares de soldados mortos na guerra – alemães, franceses, russos, ingleses, italianos, etc., e a legenda dizia: “finalmente a paz mundial”.
Esses beligerantes tinham conseguido a paz, graças à perda da vida. A verdadeira paz, porém, não é uma paz por ausência de vida, mas sim uma paz pela presença e plenitude da vida, por uma vivência tão plena e exuberante que todas as desarmonias culminaram em perfeita harmonia.
Por isso dizia o Mestre: “Eu vim para que os homens tenham a vida, e a tenham em maior abundância”.
O homem-ego não tem paz, porque não está na plenitude da vida, vive apenas uma semi-vida, quiçá uma pseudo-vida, e por isto tem de brigar uns com os outros, porque está em discórdia consigo mesmo.
A solução não está numa diminuição de vida, mas sim numa intensificação de vida. Se todos os homens tivessem a plenitude da vida, a consciência do seu Eu divino, haveria paz individual e paz universal.
A verdadeira paz é a coisa mais dinâmica e realizadora do mundo; o homem autopacificador e autopacificado é o campeão das grandes realizações; ele sabe que paz é um poder silencioso, uma potência irresistível, que faz lembrar o curso silencioso dos astros pelas vias inexploradas do cosmos, ou a irresistível dinâmica da natureza, que tudo vence sem o menor ruído.
A verdadeira paz tem afinidade com o mundo da metafísica, e não da física, com o mundo da invisível realidade, e não das facticidades visíveis.
A principal tarefa do homem, aqui na terra, é estabelecer o grande tratado de paz dentro de si mesmo.
Toda a falta de paz que desgraça a pobre humanidade provém unicamente da falta de equilíbrio e harmonia entre o ego da humana personalidade e o Eu divino da sua alma. Aqui no Ocidente, é regra geral que o ego humano – material, mental e emocional – se preocupe com a vida humana sem se importar com seu destino divino. “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se sofrer prejuízo em sua própria alma?” – estas palavras do Cristo enunciam, em forma lapidar, toda a tragédia da vida humana: o homem corre freneticamente atrás dos bens deste mundo, sem se importar com o bem-estar de sua alma. Mas essa diversidade dispersiva sem a devida unidade concentrativa, tende a acabar fatalmente num caos centrífugo, que, na medicina, se chama “frustração”, que quer dizer despedaçamento ou esfacelo.
É precisamente este o programa do anti-Cristo, no episódio da tentação: “Eu te darei todos os reinos deste mundo e sua glória – prostra-te em terra e adora-me”.
O homem ocidental é um homem visceralmente centrífugo, dispersivo, fragmentado, frustrado, e por isto não tem paz, que é o apanágio da harmonia, ou seja, da unidade na diversidade.
Alguns orientais caíram no extremo oposto, abolindo a diversidade a favor da unidade, substituindo a atividade do ego pela passividade do Eu; em vez de realizarem uma mística sadia, sucumbiram a um misticismo doentio.
O homem integral, porém, não é um profano dispersivo, nem apenas um místico concentrativo.
O homem cósmico estabeleceu dentro de si o grande tratado de paz, a harmonia, o equilíbrio entre o seu centro divino e as suas periferias humanas. O homem integral é cósmico ou univérsico, porque é governado pelas mesmas leis que regem o mundo sideral, cuja atração centrípeta é perfeitamente equilibrada pela repulsão centrífuga.
A harmonia cósmica do homem, que se chama paz, é, pois, o resultado da realização do homem bipolar.
O homem que se pacificou a si mesmo por meio dessa lei de equilíbrio, irradia paz e harmonia ao redor de si, na vida doméstica, social, nacional e internacional.
O autopacificador é, mesmo inconscientemente, um alopacificador. Não há necessidade que fale muito em paz, nem que faça congressos ou comícios pró-paz – basta que ele mesmo seja um centro e uma fonte da verdadeira paz – e o mundo será pacificado por esse centro de paz dinâmica.
Paz, já o dissemos, não quer dizer passividade, inércia, inatividade. A verdadeira paz é essencialmente dinâmica, ativa, realizadora, transbordando para todos os lados, assim como o globo solar irradia luz,calor, vida e beleza por todas as latitudes e longitudes do Universo.
Os verdadeiros pacificados e pacificadores, diz o Mestre, são chamados “filhos de Deus”. Sendo Deus a infinita e a eterna paz do Universo, que outra coisa poderiam os filhos de Deus ser senão esta mesma paz?
Basta que exista algures um centro de paz dinâmica para que o mundo tenha paz.
Mas esse centro de paz dinâmica supõe autoconhecimento e auto-realização. Enquanto o homem não se conhece a si mesmo, confundindo o seu ego-humano com o seu Eu divino, não há conhecimento da verdade sobre si mesmo, e por isto não há libertação pela verdade. O primeiro passo para a realização do grande tratado de paz é a resposta à eterna pergunta: “Que sou eu?”
A resposta foi dada por todos os grandes Mestres da humanidade, sobretudo pelo Cristo, quando identificou o centro do homem com o Pai, com a Luz, com o Reino de Deus, com o Tesouro Oculto, com a Pérola Preciosa, com uma Fonte de águas vivas.
Quando o homem realiza em si esse Reino de Deus, verificará, talvez com grande surpresa, que não perdeu as coisas do seu ego humano, mas as possui mais firme e autenticamente. Quem possui o mais possui o menos – mas quem procura possuir este à custa daquele perde tanto o menos como o mais. Quem quer salvar o seu ego-humano, sacrificando o Eu divino, perderá tudo; mas quem está disposto a renunciar ao ego-humano a fim de possuir o Eu divino, verificará que, além de salvar este, salvou também aquele, uma vez que a redenção do TODO implica na redenção da parte. “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e sua harmonia – e todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo”.
Em véspera de sua morte disse o Mestre aos seus discípulos: “Eu vos dou a paz, mas não a dou como o mundo a dá”. Promete-lhes uma paz com alegria. Uma paz passiva seria uma paz com tristeza, uma vez que a atividade é alegria, e a passividade é tristeza. Esta paz que o Mestre tinha em si, mesmo em face da morte, é a paz que ele quer ver em seus discípulos, não pode ser destruída nem pela perspectiva da morte, nem pela traição, negação e fuga de seus discípulos. Esta paz, que o mundo não pode dar e que o mundo não pode tirar, é totalmente inatingível pelas circunstâncias externas. Podem, sim, as circunstâncias adversas causar sofrimento e tristezas, como aconteceu até ao Nazareno, mas não podem destruir a paz e felicidade da alma. As tempestades revolvem a superfície do mar, mas na sua profundeza continua absoluta quietação e tranqüilidade. A soberania da substância divina do homem não é atingida pelas tiranias das circunstâncias humanas. A paz de dentro persiste no meio de todas as guerras de fora.
É a grande declaração da independência espiritual no meio de todas as escravidões materiais e sociais.
A verdadeira paz dos filhos de Deus é silenciosamente dinâmica, age como se não agisse, realiza grandes coisas sem arrombar portas e sem esmagar ninguém; não atua com o estampido da explosão de uma bomba, mas com a taciturna potência com que o sol e as estrelas traçam as suas silenciosas órbitas pelo espaço infinito. A paz é silenciosamente poderosa, anonimamente irresistível, move os maiores pesos com leveza, faz com facilidade as coisas mais difíceis, abrange com suavidade todo o Universo de uma à outra extremidade, “não se houve o seu clamor nas ruas, não quebra a cana fendida, nem apaga a mecha ainda fumegante”.
O homem que encontrou a paz dentro de si mesmo, não é apressado, nervoso, agitado, porque em qualquer trecho da sua jornada, está sempre no termo e na meta de todas as suas viagens. O seu centro, como o de Deus, está em toda a parte, e a sua querência está em sua própria consciência; a meta de todos os seus métodos coincide com o Infinito, como a geometria diz das linhas paralelas.
A paz do homem autopacificado pela verdade sobre si mesmo exala uma indefinível serenidade.
Todos se sentem bem e felizes na presença desse homem que conquistou a paz depois de grandes lutas consigo mesmo. A sua serenidade dinâmica envolve e permeia todo o ambiente, como um fluido magnético, como uma aura suavemente poderosa, como um banho de luz e força. E todas as almas receptivas se sentem tão bem nesse Tabor de transfiguração que estão com vontade de dizer: Mestre, que bom que é estarmos aqui... vamos aqui armar as nossas tendas, porque aqui moram os filhos de Deus e aqui impera o Reino dos Céus...
Um único homem realmente pacificador e pacificado dentro de si mesmo, vale mais para a paz universal do mundo do que todos os pretensos fazedores de paz que não realizaram a paz dentro de si mesmos.
“Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus”.