sexta-feira, 3 de outubro de 2008

FÉ INCONDICIONAL (Lc 17, 5 ss.)

A FÉ CRESCE NA RAZÃO EM QUE O HOMEM SE LIBERTA DO EGOÍSMO

“Disseram os discípulos ao Senhor: aumenta-nos a fé!
Respondeu-lhes Jesus: Se tiverdes fé, que seja como um grão de mostarda, e disserdes a esta amoreira: arranca-te e transplanta-te para o mar! Ela vos obedecerá”.
Logo depois desta elevada metafísica, passa Jesus ao plano de uma física tão corriqueira, como a dos trabalhos de agricultura e pecuária – que, à primeira vista, não atinamos com a afinidade entre esta e aquela.
Mas, no fim dessa estranha digressão de aparente heterogeneidade, volta o Mestre a ligar o fio da homogeneidade, concluindo: “Quando tiverdes feito tudo que vos foi mandado fazer, dizei: somos servos inúteis; cumprimos a nossa obrigação; nenhuma recompensa merecemos por isto”.
Esta conclusão final é a resposta ao pedido inicial dos discípulos: Senhor, aumenta-nos a fé!
Antes de tudo, que quer dizer fé?
Há quase 2000 anos que a cristandade identifica com crença – e esta identificação marcou o início de uma das maiores tragédias espirituais do cristianismo de todos os setores, sobretudo do protestantismo, que se baseia principalmente no princípio de “quem crer será salvo”.
A nossa palavra “fé” vem do termo “fides”, radical de fidelidade. Fé é, pois, uma atitude de fidelidade, harmonia, sintonia. Quando o meu aparelho de rádio está sintonizado com a onda eletrônica emitida pela estação emissora, então o meu rádio apanha nitidamente a música irradiada pela emissora – meu rádio tem “fé”, fidelidade, alta fidelidade, com a estação emissora. Mas, quando o meu aparelho receptor não está afinado pela mesma freqüência vibratória da emissora, não apanha a música, porque não tem “fé”, fidelidade, sintonia.
A “crença” nada tem que ver com fé. A crença, substantivo derivado do verbo crer, é uma opinião vaga, incerta, indefinida; assim como quando alguém diz: creio que vai chover, creio que fulano morreu – mas nada disto é certo.
Por que é que a palavra exata “fé” foi substituída pelo vocábulo vago “crença”? porque dizemos “eu creio”, em vez de dizermos “eu tenho fé”?
Infelizmente, o substantivo latino fides não tem verbo, e, como fé é derivado de fides, também em português, como em nenhuma outra língua neo-latina, existe verbo derivado da palavra fé. E temos de empregar um verbo de outro radical. Do latim credere fizemos crer, crença.
E com isto perdemos a verdadeira noção da palavra fé, no sentido de fidelidade.
Poderíamos inventar o verbo “fidelizar” para dizer “ter fé” – mas é um neologismo desconhecido.
O texto dos Evangelhos do primeiro século foi escrito em grego, e, nesta língua, fides, fé, é pistis, que tem o verbo pisteuein, ter fé, fidelizar. Mas a tradução latina, não encontrando verbo derivado de fides, se viu obrigada a recorrer ao termo vago credere, que em português deu crer.
Os discípulos de Jesus pedem, pois, ao Mestre: Aumenta a nossa fidelidade, a nossa sintonia, a nossa harmonia com o mundo espiritual; robustece a consonância entre a nossa consciência humana e a consciência divina. Os discípulos sentem que têm uma ligeira fidelidade com o mundo da realidade divina; mas sentem também a fraqueza e pequenez dessa sua fidelidade.
Então lhes respondeu o Mestre: Se tiverdes fidelidade, genuína e autêntica, mesmo que seja inicialmente pequena como um grão de mostarda, porém, genuína e autêntica, então tereis poder sobre todo o mundo material. O que é importante não é a quantidade, mas sim a qualidade da vossa fé. A onipotência do espírito tem poder sobre qualquer potência da matéria. O que é decisivo é a intensidade qualitativa da vossa fé, não a extensidade quantitativa.
E, para lhes mostrar em que consiste essa qualidade intensiva da fé, recorre o Mestre, não a uma definição abstrata e teórica, mas a uma exemplificação concreta e prática. Faz ver que os atos desinteressados produzem o clima propício para uma atitude espiritual de fé ou fidelidade. Quem trabalha para ser recompensado age em nome do ego humano, sempre egoísta; mas quem trabalha sem nenhuma intenção, explícita ou implícita, de ser recompensado, esse crea um ambiente propício para a atitude da fé.
Os discípulos pediram ao Mestre: Aumenta-nos a fé! E o Mestre lhes faz ver que eles mesmos devem aumentar a sua fé por meio de atos desinteressados.
A fé é uma atitude espiritual do Eu, mas qualquer ato interesseiro do ego mercenário enfraquece o ambiente para o nascimento e crescimento da fé.
A frase final sobre “servos inúteis” é um golpe de misericórdia para o nosso inveterado egoísmo humano. Todo o ego se sente “servo útil”, e, de tão útil que se julga, quer ser sempre recompensado por seus atos. O ego nada faz de graça; a zona da graça é do Eu espiritual, que, por isto mesmo, pode trabalhar de graça.
“Por Moisés foi dada a lei (ego), pelo Cristo veio a verdade, veio a graça (Eu).
Todo o ego mercenário é um ótimo discípulo de Moisés – e um péssimo discípulo do Cristo.
Quem vive no signo da graça age de graça – quem não vive no signo da graça, vive na desgraça.
Por isso, todo o ego mercenário é um desgraçado.
O filósofo francês Bergson diz que todas as igrejas detestam o egoísmo terrestre, mas todas recomendam o egoísmo celeste. As teologias ensinam, geralmente, que o homem deve ser bom, altruísta, virtuoso, com o fim de merecer o céu – e não percebem que também isto é egoísmo, egoísmo póstumo, egoísmo sublimado.
O homem realmente liberto e totalmente realizado não espera recompensa alguma pelo fato de ser bom, nem antes nem depois da morte. O homem realmente bom é incondicionalmente bom. Não é bom para ser recompensado com algum céu objetivo, com um premio celeste. O homem incondicionalmente bom realiza o reino dos céus dentro de si subjetivamente, e esta auto-realização é que é o seu céu. Não espera nenhum céu externo de fora, realiza o seu céu interno de dentro.
Isto não é egoísmo, porque onde o ego foi totalmente superado não há mais egoísmo.
É o que o Mestre chama ser “servo inútil”, sem crédito, sem direito a nenhuma recompensa objetiva.
Kant, na sua filosofia analítica censura acremente Spinosa pelo fato de ter glorificado o homem incondicionalmente bom; mas o monista judeu de Amsterdam era mais crístico do que o teísta cristão de Koenigsberg.
Toda esta parábola visa a mostrar que a verdadeira fé ou fidelidade com o espírito de Deus, cresce na razão direta da libertação do homem de qualquer espírito mercenário.