terça-feira, 30 de setembro de 2008

O GRÃO DE MOSTARDA (Mt 13, 21 ss; Mc 4, 30 ss.; Lc 13, 18 ss.)

A APARENTE PEQUENEZ DA GRANDEZA DO ESPÍRITO

Na parábola do grão de mostarda focaliza o Mestre a aparente impotência da onipotência espiritual, quase sempre oculta pelas ilusórias grandezas das coisas materiais. Os nossos sentidos e o nosso intelecto não percebem numa semente senão os contenedores externos, e nada sabem do conteúdo interno, da vida invisível, que creou esses invólucros visíveis. O conteúdo vivo vivifica os contenedores mortos, mas o homem profano só enxerga os envoltórios vivificados e ignora o centro vivificante. O homem empírico-analítico nada sabe da Vida, só conhece os vivos, e, enquanto não entrar numa nova dimensão de consciência, nunca saberá o que é a Vida, que produz os vivos, o Creador que crea as creaturas, a Realidade que causa as facticidades.
A parábola do grão de mostarda é um convite para descobrirmos a Realidade da Vida em todas as facticidades vivas. A Vida é imanente em todos os vivos. A Vida não é algo justaposto aos vivos, mas é a sua alma, sua íntima essência, é o Uno que produz o Verso, formando o Universo.
A melhor palavra para designar Deus seria Vida. Em face da Vida não há ateus. A Vida é a Realidade universal do cosmos, que nunca foi negada por ninguém.
Deus não é algo transcendente ao mundo, ele, a Vida, é imanente ao mundo, como a Vida; Deus é a alma do Universo, e o Universo é o corpo de Deus, como dizia Spinoza.
Semelhantemente, o Reino de Deus no homem não é algo adicionado ao homem, algo como um artigo de luxo que o homem use de vez em quando, como enfeite festivo. “O Reino de Deus está dentro dos vivos; é a alma, essência e quintessência do homem. Nenhum vivo seria vivo se nele não estivesse a Vida, e se ele não estivesse na Vida. Todo o vivo pode dizer: Eu e a Vida somos Um; a Vida está em mim, e eu estou na Vida – mas a Vida é maior do que eu.
Deus é a Vida, e nós somos os vivos. Essencialmente, cada um de nós é Vida; existencialmente, somos vivos.
Quando os vivos se deixam penetrar totalmente pela Vida, então os próprios vivos, a princípio pequeninos como um grãozinho de semente, serão engrandecidos pela Vida, e os vivos pequenos serão a tal ponto beneficiados pela Vida que se tornarão vivos grandes. O maior benefício que o vivo pode fazer a si mesmo é deixar-se penetrar pela Vida. A Vida é o maior benfeitor do ego humano, embora este, na sua ignorância, muitas vezes seja inimigo do Eu. Neste sentido diz Krishna na Bhagavad Gita: “O Eu é o maior amigo do ego, embora o ego seja o pior inimigo do Eu”. E o próprio Cristo, no Evangelho, afirma: "Quem quiser salvar a sua vida (ego), perdê-la-á; mas, quem perder a sua vida por amor de mim e do Evangelho (Eu) salvá-la-á".
O maior benefício que o ego humano pode fazer a si mesmo é entregar-se e integrar-se totalmente no Eu divino; e o maior malefício que o ego humano pode fazer a si mesmo é isolar-se em si mesmo e resistir à sua integração no Eu divino.
O ego que não se integra no Eu se desintegra. O ego que tenta realizar-se sem o Eu se desrealiza. Mas o ego que se integra no Eu, que integra o seu pequeno finito no grande Infinito, esse eterniza o próprio ego, graças à sua integração no Eterno.
E, quando o ego humano se integra voluntariamente no Eu divino, pela mística do primeiro e maior de todos os mandamentos, então não somente se beneficia a si mesmo, mas torna-se benfeitor também de outros egos humanos, pela ética do segundo mandamento, amando o seu próximo como a si mesmo. Por isso, diz o Mestre que as aves do espaço fazem os seus ninhos nos ramos da mostardeira – outros homens encontram refúgio e refrigério no homem que se refugiou e realizou em Deus, que atingiu a sua maturidade e plenitude no Infinito.
Para fazer bem aos outros é necessário ser bom em si mesmo. Quem não é bom não pode fazer bem. Para ser benfeitor alheio é necessário o homem ser auto-realizado ele próprio. É esta a inexorável matematicidade da mística.
É uma velha e funesta ilusão querer fazer bem aos outros sem ser bom em si mesmo. A ética sem a mística é uma pseudo-ética, uma funesta utopia; pode ser que seja moralidade, altruísmo, filantropia, mas não é verdadeira ética, que é sempre um transbordamento espontâneo da mística. A consciência da paternidade única de Deus transborda irresistivelmente na vivência da fraternidade universal dos homens – e só isto é ética genuína e verdadeira.
No Oriente, há uma espécie de mostardeira que chega a dar uma árvore de alguns metros de altura, oferecendo guarida às aves, como diz a parábola.
O homem, quando plenamente desenvolvido no seu ser-bom místico, é sempre um benfeitor no seu fazer-bem ético, muitas vezes sem o saber.
Ser bom não é ser bonzinho, menos ainda ser bombonzinho. Muitas vezes ser bom parece até ser mau; por vezes o nosso ser-bom exige rigor, disciplina, aparente crueldade. Quem permite passivamente todos os abusos ao redor de si, sob pretexto de ser bom, não é bom. Ser bom é ser intransigente amigo da verdade, de retitude, da justiça, da ordem e disciplina.
Quando Jesus expulsou os vendilhões do templo revelou-se um homem realmente bom.
Nós, quando agimos com severidade e rigor, agimos muitas vezes em defesa do nosso ego humano, ofendido, e isto não é ser bom. Mas, quando age com rigor e severidade em defesa de uma causa sagrada, esse é realmente bom, talvez cruelmente bom, embora os homens mundanos o tachem de mau.
O homem realmente bom deve ter a coragem de ser considerado mau por aqueles que não são bons. Ser bem-bom é, muitas vezes, o contrário de ser bom.
O homem realmente bom é o maior benfeitor da humanidade. Homens realmente bons, auto-realizados, irradiam poderosas auras, mesmo que ninguém saiba da sua existência. Um homem que chegou a plenitude do amor, dizia Gandhi, neutraliza o ódio de muitos milhões.
Na parábola do grão de mostarda, focaliza o Mestre, mais uma vez, os dois mandamentos da mística revelada em ética, “nos quais estão toda a lei e os profetas”, nos quais está toda a religiosidade, toda a auto-realização do homem.
Um átomo de metafísica produz um mundo de física.
Se a vida do grão de mostarda eclodir na vitalidade da planta e beneficiar outros homens, então o Reino de Deus será proclamado sobre a face da terra, e haverá um novo céu – e também uma nova terra.

CAPRICHOS PUERIS (Mt 11, 16 ss.; Lc 7, 31 ss.)

O HOMEM SAPIENTE NÃO É AFETADO PELA OPINIÃO PÚBLICA

Certo dia ouviu Jesus murmurações e fofocas em redor de si; eram dois grupos de descontentes que altercavam entre si: os rigoristas e os laxistas.
Os rigoristas diziam: João Batista, esse sim, é um santo de verdade; vive em rigorosas austeridades, alimentando-se de mel silvestre e das vagens da árvore do gafanhoto; mas esse tal profeta de Nazaré é amigo de boas iguarias e de vinhos capitosos; aceita até convites a banquetes de publicanos e pecadores.
Os laxistas, por outro lado, exultavam e diziam: Esse Jesus, sim, é um santo moderno; come e bebe como nós; vive em plena sociedade; não mora no deserto nem é possesso do mau espírito da clautrofilia, como esse mergulhador João.
Houve veemente discussão entre os fariseus rigoristas e os saduceus laxistas sobre a pessoa do Nazareno e seu modus vivendi.
Jesus, ouvindo dessa dissensão, respondeu-lhes com uma parábola que tanto tem de hilariante quanto de espirituoso. Disse-lhes: Com que hei de comparar essa gente? São como crianças sentadas em praça pública, formando dois partidos: o dos dançarinos folgazões e dos choramingueiros tristonhos. Uns dizem: A flauta vos tocamos – e não bailastes. Os outros se queixavam: Cânticos tristes tangemos – e não chorastes. Veio João, que não comia nem bebia, e dissestes: Está possesso do demônio! Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizeis: Eis aí um comilão e bebedor de vinho!
Esta parábola faz lembrar a história do velho, do menino e do burro, e tantas outras parábolas de Esopo, de La Fontaine e de outros narradores.
Não é possível contentar a todos. Quando alguém leva vida austera de asceta, descontenta os laxistas; quando leva vida normalmente humana, irrita os rigoristas.
E conclui o Mestre com umas palavras um tanto enigmáticas: “Entretanto, a sabedoria é justificada por seus filhos”. Outro evangelista diz: “A sabedoria é justificada por suas obras”.
Por que esta divergência de opiniões?
É que todo o modo de pensar dos profanos, dos intelectualistas analíticos, é como linhas divergentes, que não se encontram umas às outras, ao passo que a intuição espiritual dos sábios assemelha-se a linhas paralelas, que, segundo a geometria, se encontram somente no Infinito; ou até a linhas convergentes, que se encontram mesmo no finito. Quando o sábio intui a Verdade e age de acordo com a sua intuição, raras vezes é compreendido pelos eruditos intelectualistas, porque estes operam em outra dimensão. A zero-dimensão do sábio não pode ser compreendida pelos analíticos, que vivem na segunda ou terceira dimensão do profano. O ego é invariavelmente tri-dimensional; age de acordo com sua natureza físico-mental-emocional; age segundo as categorias de tempo-espaço-casualidade. O ego é como um prisma triédrico, que dispersa a luz incolor da Verdade única na faixa multicor das facticidades, que não harmonizam umas com as outras; o verde não aprova o vermelho, o azul não se concilia com o amarelo. A luz incolor da Verdade não briga com as cores, mas estas brigam entre si. Ou, na frase genial da Bhagavad Gita: “O ego é o pior inimigo do Eu, mas o Eu é o melhor amigo do ego”.
A sabedoria da Verdade não luta com a erudição das ilusões – mas essas lutam com aquela e lutam entre si.
O tolo não compreende o sábio – mas o sábio compreende o tolo.
Os egos insipientes discordam do Eu sapiente – mas o Eu sapiente compreende os egos insipientes.
O homem profano gosta de comer e beber bem, e abusa dos prazeres da vida.
O homem místico recusa estas satisfações e só vive em Deus.
O homem cósmico, porém, não abusa, como o profano, nem recusa, como o místico; mas usa simplesmente os bens da vida, porque os considera como meios, mas nunca como fins em si mesmos.
Quem abusa, considera os bens da vida como fim supremo. Quem recusa, não os considera nem como fim nem como meio. Quem usa os bens da vida não os considera como um fim, mas sim como meios para conseguir um fim superior.
A verdadeira sabedoria é justificada por seus filhos, em suas obras.
Evidentemente, o divino Mestre não era um místico, ao menos não nos três anos da sua vida pública; muito menos ainda era um profano; mas era um homem cósmico. Não abusava, nem recusava, mas usava.
E por esta razão não era compreendido nem pelos profanos nem pelos supostos místicos do seu tempo.

A VIDEIRA E OS SEUS RAMOS (João 15, 1 ss.)

A VITALIDADE DO CRISTO FLUI ATRAVÉS DAS ALMAS CRISTIFICADAS

Esta parábola focaliza alguns aspectos profundamente místicos, que só os verdadeiros iniciados compreenderão devidamente.
Acima de tudo, afirma a presença do Cristo interno no ser humano. Quem identifica a entidade cósmica do Cristo com a personalidade de Jesus, não pode aceitar a presença do Cristo em cada homem.
“Eu estou em vós, e vós estais em mim” – estas palavras são totalmente enigmáticas a quem só conhece o Jesus histórico do 1º século, que viveu na Palestina, e nada sabe do Cristo cósmico, que está conosco todos os dias até a consumação dos séculos.
O Verbo se fez carne, diz o 4º Evangelho, e fez habitação em nós. Tanto o texto grego do 1º século, como também a tradução latina, dizem “em nós” (em hemin, in nobis); nenhum texto diz “entre nós”. Se o Verbo, o Cristo cósmico, depois da encarnação em Jesus de Nazaré, fez habitação em nós, então agora habita em cada um de nós. O Cristo cósmico, que se revestia da natureza humana de Jesus, e depois da ressurreição cosmificou e cristificou esse Jesus, universalizou-se na forma do Jesus cosmificado. E, nesse estado, o Cristo habita em cada um de nós.
Sem a compreensão desta “inabitação” do Cristo no homem, é incompreensível toda a parábola da videira e seus ramos, que frisa a identidade da vida uma e única no tronco da videira (Cristo) e em seus ramos (homens).
Depois de afirmar esta identidade da vida do Cristo e de cada homem, a parábola apresenta duas modalidades dessa vivência dos ramos na videira: um ramo da videira pode ser estéril, apesar de estar na videira – e um ramo pode ser frutífero: “Quem estando em mim, não produzir fruto..., quem, estando em mim, produzir fruto...”.
Quer dizer que um homem pode estar externamente no Cristo, sem ser internamente do Cristo; um homem pode ser cristão, sem ser crístico; um homem pode ser nominalmente do Cristo, sem viver realmente de acordo com o espírito do Cristo; pode ser espiritualmente estéril, apesar de ser ritualmente cristão.
Há cerca de um bilhão de cristãos no mundo – e quantos deles serão crísticos?
“Quem estando em mim, não produzir fruto, será cortado e lançado fora para ser queimado”.
Com estas palavras afirma o Evangelho, mais uma vez, a possibilidade da extinção da individualidade humana, se não for cristificada. A alma humana não é imortal, mas imortalizável; a imortalidade potencial faz parte da natureza humana, é um presente de berço, mas a imortalidade atual é uma conquista da consciência. O homem, mesmo cristão, mas não cristificado, sucumbirá à “morte eterna”, a total extinção, no fim do seu ciclo evolutivo.
Por fim, a parábola descreve a sorte do ramo da videira frutífero, isto é, do homem que, estando no Cristo, produz fruto de vivência crística. E o que a parábola diz desse homem é, à primeira vista, aterrador: o homem de frutificação crística “será podado a fim de produzir fruto mais abundante”.
A poda (em latim purificatio, em grego katharsis) consiste em cortar a maior parte do ramo da videira, deixando apenas uma pequena parte, com o fim de fazer concentrar nessa parte toda a seiva vital da planta e, na primavera, fazê-la produzir fruto mais abundante. A poda, ou purificação, é uma espécie de sofrimento. Todo o viticultor sabe que um ramo de videira, quando podado, “chora” durante algum tempo, fazendo pingar no chão suas “lágrimas”, a seiva que sai do ferimento. Sem essa dolorosa catarse, não há frutificação abundante.
O sofrimento purificador a que, segundo a parábola, é sujeito o homem cristicamente frutífero, não é uma punição, não é um sofrimento-débito, mas sim um sofrimento-crédito; o sofredor não sofre para pagar débito, próprio ou alheio; sofre para aumentar o seu crédito.
Na Sagrada Escritura ocorrem diversos casos de sofrimento-crédito.
Job sofre, não por ser pecador, mas para aumentar a sua santidade.
O cego de nascença nasceu cego, não por pecados próprios, nem por pecados de sus pais, mas para que nele se manifestassem as obras de Deus, para que aumentasse o seu crédito espiritual.
Jesus, redivivo, declara aos discípulos de Emaús, escandalizados com o sofrimento de um justo, que ele devia sofrer tudo isto para assim entrar em sua glória, para promover a evolução espiritual do seu Jesus humano.
Os nossos teólogos teriam respondido que Jesus sofreu para salvar a humanidade, como é tradição rotineira há quase 2000 anos; o Mestre, porém, declara aos discípulos de Emaús que ele sofreu tudo isso “para entrar em sua glória”, para consumar a sua própria evolução crística, de acordo com aquilo que dissera no Gólgota, “está consumado”; não se referia à redenção da humanidade coletiva, mas sim à cristificação total da humanidade individual do seu Jesus humano.
Em todos esses casos, há sofrimento-crédito.
Na parábola da videira, reaparece esse mesmo sofrimento-crédito: o homem que produz fruto é sujeito a um sofrimento purificador para que produza fruto ainda mais abundante.
As leis cósmicas têm caráter nitidamente evolutivo, ascensional. Quem é bom deve tornar-se melhor, a fim de culminar no ótimo. Por outro lado, o mau que se recusa a tornar-se bom, se tornará pior, até baixar a ser péssimo – e o péssimo acaba no zero da extinção. As leis cósmicas não estão interessadas em perpetuar estagnação, nem descer à involução, as leis cósmicas exigem imperiosamente evolução ascensional. Quem não progride regride, e a regressão acaba no nadir da morte eterna, assim como a evolução culmina no zênite da vida eterna.
Deus é a lei cósmica. Nele não há sentimentalismos piegas. Quem não se realiza se desrealiza; quem não se integra no Infinito se desintegra.
“Quem não produzir fruto será cortado e lançado fora – quem produzir fruto será purificado para que produza fruto mais abundante”.
Esta parábola revela o monismo absoluto da realidade divino-crística. O Uno se revela como Verso em todo Universo. Na natureza infra-hominal, o Verso das creaturas é automaticamente governado pelo Uno do Creador; no ser humano, porém, mercê do livre arbítrio, a consciência da presença de Deus pode ser intensificada – e pode também ser debilitada; o homem pode crear em si a pleni-consciência da presença de Deus, como aconteceu em Jesus – e pode também obliterar totalmente a consciência dessa presença, como talvez tenha acontecido na alma de Judas Iscariotes.
O uso ou abuso do livre arbítrio, como se vê, é responsável pelo bem ou pelo mal que o homem fizer.

MALDIÇÃO DA FIGUEIRA ESTÉRIL (Mt 21, 18 ss.; Mc 11, 12 ss.)

O HOMEM DEVE SER ESPIRITUALMENTE FECUNDO, MESMO EM AMBIENTE DESFAVORÁVEL

Esta parábola, a par das do administrador desonesto e dos trabalhadores na vinha, têm causado desapontamento, e até revolta, a muitos leitores.
É que toda a parábola é incompreensível e paradoxal quando visualizada da perspectiva da inteligência unilateralmente analítica, em que se encontra o grosso da humanidade. As parábolas nasceram de uma intuição espiritual, e somente dessa altura é que podem ser realmente compreendidas.
Tentemos compreender o sentido real das palavras do Mestre: a maldição da figueira estéril.
O texto, referido por Mateus e Marcos é bem conhecido: Certo dia, passava Jesus com seus discípulos por uma figueira à beira da estrada e aproximou-se dela para procurar frutos, porque estava com fome. Mas não encontrou fruto algum, pois, diz o texto, não era tempo de figos. A figueira cultivada produz figos na primavera ou no verão; no outono e no inverno perde as folhas e não produz frutos.
Jesus, vendo que a figueira estava cheia de folhas, esperava que tivesse frutos; mas não encontrou nada, porque não era tempo de figos; e ele disse: “Nunca mais ninguém coma fruto de ti”.
No mesmo instante, a figueira começou a murchar.
No dia seguinte, passaram Jesus e seus discípulos pela mesma estrada, e os discípulos vendo a figueira seca exclamaram: “Olha, Mestre, como ela secou depressa!”
Que sujeito atrabiliário esse Jesus! Dirá qualquer profano, sobretudo o profano erudito. Vingar-se de uma figueira inocente pelo fato de ela não ter produzido fruto, quando, segundo as leis da natureza, que são as leis de Deus, nem podia produzir fruto.
A figueira da parábola, que simboliza o homem, tinha folhagem sem fruto, sinal de que não era fiel à sua natureza. Toda a figueira, quando não tem fruto, também não tem folhas. No inverno ela está sem fruto nem folhas.
Na natureza extra-hominal, não ocorre semelhante fenômeno, uma vez que as leis da natureza são automáticas e obedecem instintivamente à ordem da Inteligência Cósmica. Na natureza humana, porém, pode acontecer esse paradoxo: muita folhagem sem fruto algum, muitas exterioridades, sem nenhuma interioridade.
Sendo que o símbolo espiritual da parábola visa ao homem, segue-se que o Mestre se refere a um ser humano fecundo nas coisas do ego externo e infecundo no seu Eu interno. A maldição não se refere, portanto, ao símbolo material da figueira física, mas sim ao simbolizado espiritual da figueira metafísica, ao homem espiritualmente estéril.
O filósofo inglês Bertrand Russell, no seu livro Porque não sou cristão, não compreendeu esse sentido místico da parábola, e por isto censura Jesus por ter amaldiçoado uma planta inocente.
Esse desapontamento do homem profano é compreensível. Mas, o erro está precisamente nesse plano da sua ignorância. A parábola parte do plano material, e vai ao plano espiritual. É evidente que, no plano material do símbolo, a figueira não tinha outra alternativa a não ser a de infecundidade. Neste plano, e somente neste plano, não há nenhuma culpa nem lhe cabe maldição alguma; ela fez o que podia fazer segundo as leis de Deus.
Bem diferente, como já dissemos, é o caso no plano espiritual do simbolizado, único plano que faculta uma compreensão verdadeira.
O homem dotado de livre arbítrio não tem apenas uma possibilidade de ser frutífero em condições favoráveis; pode ser frutífero também em circunstâncias desfavoráveis. O homem, graças ao seu livre arbítrio, transcende as leis automáticas da natureza; pode produzir frutos bons tanto em tempo propício,quando rodeado de circunstâncias favoráveis – como também em tempo desfavorável, quando cercado de circunstâncias adversas, mesmo quando parece ser impossível ser bom.
O homem não é necessariamente o produto do meio em que vive, e, se o é, prova ser derrotado pelas circunstâncias. Quem é bom em tempo bom é precariamente bom – mas quem é bom em tempo mau, esse é heroicamente bom. Quem produz frutos quando é tempo de frutos, é um homem virtuoso – mas quem produz frutos quando, segundo as circunstâncias, não é tempo de frutos, esse é um homem sábio, um homem perfeito, um homem crístico. Ser bom com os bons é fácil. Ser bom no meio dos maus é difícil. “O Reino dos Céus sofre violência – e somente os que usam de violência o tomam de assalto”.
Os grandes Mestres espirituais da humanidade, sobretudo o Cristo, não simpatizam muito com certos virtuosos, que são bons no meio dos bons: mas sim com os heróis da sapiência, que são bons no meio de maus, puros entre impuros, livres no meio de escravos, luz no meio de trevas.
A alma da parábola é, repetimos, o simbolizado espiritual, e não apenas o símbolo material. No plano do simbolizado espiritual existe sempre a possibilidade de produzir fruto fora da estação, a despeito das adversidades da natureza e da perversidade dos homens. Se o Reino dos Céus fosse a querência dos que frutificam em tempo propício e fácil, já estaria o céu povoado de covardes e comodistas. Mas o céu verdadeiro, que está dentro de cada homem, não é para os comodistas, os covardes, os medíocres, os passeadores em largas avenidas; o Reino dos Céus sofre violência, e somente os fazedores de violência contra si mesmos o tomam de assalto, como uma fortaleza aparentemente inexpugnável.
A parábola frisa a necessidade que o homem realmente espiritual tem de se emancipar da tirania das circunstâncias humanas e proclamar a soberania da sua substância divina.
No fim, acrescenta Jesus que, quem tem fé, isto é, fides, fidelidade, sintonia perfeita com o mundo da realidade divina, esse fará mais do que ele fez com a figueira, fazendo-a secar imediatamente; esse homem poderá até transportar montanhas pelo poder do espírito. “Tudo é possível àquele que tem fé”; ao homem que está realmente identificado com a alma do Universo, cuja onipotência é partilhada pelo homem sintonizado com a alma da Divindade.
Esse homem poderá até produzir frutos no meio de circunstâncias adversas.

O AMIGO IMPORTUNO E O JUIZ INÍQUO (Lc 11, 5 ss.; Lc 18, 1 ss.)

É NECESSÁRIO PEDIR COM INSISTÊNCIA A FIM DE CREAR NA ALMA UM AMBIENTE DE RECEPTIVIDADE

Nestas duas parábolas geminadas insiste Jesus na mesma idéia: orai sempre e nunca deixeis de orar.
À primeira vista, parece estranho, e quase paradoxal, esta insistência no orar, pedir, buscar, bater.
“Pedi, e recebereis; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á... Tudo que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vô-lo dará... Orai, e nunca deixeis de orar”.
Na parábola do amigo importuno e do juiz iníquo, essa insistência chega às raias da impertinência. Imaginem! Um homem, altas horas da noite vai à casa de um amigo, bate ruidosamente à porta e lhe diz: “Amigo, empresta-me três pães, porque chegou de viagem um amigo meu, e eu não tenho o que lhe servir”. Mas o de dentro lhe responde, sem se levantar: “Deixa-me em paz! Já estou no quarto com meus filhos, e não posso levantar-me”. Mas o de fora, teimoso, continua a bater e a insistir no pedido. Finalmente, o de dentro se levanta e lhe dá o que o outro pede, não por ser seu amigo, mas para se ver livre da importunação e poder dormir.
E Jesus acrescenta que é assim que o homem deve pedir a Deus.
Na outra parábola, conta o Mestre a história de uma pobre viúva explorada por um ricaço prepotente. Ela vai ter com o juiz e insiste: “Faze-me justiça contra meu adversário”. O juiz, porém, que “não teme a Deus nem respeita homem algum”, não quer atendê-la.
Já que esta parábola tem caráter humorístico, vamos deter-nos um pouco neste aspecto: esse homem que, altas horas da noite, vêm pedir três pães para servir a um amigo, deve ter sido um yogue, um asceta, ou então um solteirão impenitente. Mora sozinho. Não tem em casa um bocado de pão. O outro pede logo três pães, por sinal que o viajante está esfaimado. O outro diz que está no seu quarto com seus filhos. Não fala em mulher. Possivelmente, segundo o costume de certos países, os meninos dormiam com o pai e as meninas dormiam com a mãe; e o quarto do marido ficava logo na entrada da casa, para a rua. Ou não existia esse móvel vergonhoso chamado cama de casal.
Na outra parábola, a viúva continua a insistir, a tal ponto que, por fim, o juiz resolve atendê-la, não por causa dela, mas, como diz pitorescamente o texto sacro, “para que, afinal de contas, ela não acabe por meter-me as mãos na cara”.
Muitos tradutores não têm coragem de traduzir ao pé da letra o que dizem tanto o texto grego do original como também a tradução latina e amenizam o tópico dizendo “para que não venha molestar-me”, como se não o estivesse molestando há tanto tempo.
Como no caso do amigo importuno, a insistência no pedir culmina numa situação hilariante.
Tanto o homem em plena noite como também o juiz atendem, finalmente, ao pedido, obrigados pela importunação dos pedintes.
Sendo que toda a parábola, como já foi dito, se compõe invariavelmente, de um símbolo material e de um simbolizado espiritual, é evidente que o motivo material e egoísta dos dois importunados não tem cabimento no simbolizado espiritual; Deus não pode sentir-se importunado por nossos pedidos, nem nos atende para se ver livre da nossa importunação. Essas comparações ilustram drasticamente a idéia central da parábola: o homem deve orar, pedir, buscar, bater tão impetuosamente como se incomodasse a Deus com as suas insistências, como se Deus fosse obrigado, quase forçado, a atendê-lo para se ver livre da suposta importunação do pedinte. Jesus sentiu a necessidade de exagerar hiperbolicamente a atitude do pedinte a fim de dar ênfase à absoluta necessidade do pedir, orar, buscar, bater.
Mas, agora perguntamos: porque essa necessidade de pedir, se Deus é onisciente, e sabe perfeitamente de que necessitamos, mesmo antes de lho pedirmos? Em outra ocasião, o próprio Mestre afirma explicitamente que “vosso Pai celeste sabe de que haveis mister, mesmo antes de lho pedirdes”.
E, apesar desta declaração categórica, continua Jesus a repetir que é necessário pedir sempre, e nunca deixar de pedir.
Essa atitude humana não pode ter por fim lembrar a Deus que necessitamos disto e daquilo, como se Deus pudesse esquecer-se de nós ou ignorar as nossas necessidades de cada dia. A finalidade do pedido ou da oração é, evidentemente, outra. A finalidade é crear em nós mesmos uma atitude tal que Deus nos possa atender, pois só “quando o discípulo está pronto o Mestre aparece”.
As eternas leis cósmicas ou divinas, funcionam com infalível precisão, com uma matemática absoluta, e não podem jamais deixar de funcionar. Mas elas só podem funcionar onde há um ambiente propício para seu funcionamento. Na natureza extra-hominal, essas leis funcionam automaticamente, porque o ambiente propício sempre existe, graças à mecanicidade das leis da natureza. O sol sempre nascerá no Oriente e se porá no Ocidente, sem adiantar ou atrasar um só segundo. A planta sempre florescerá e frutificará segundo as suas leis intrínsecas e infalíveis.
No mundo hominal, porém, podem existir ou não existir as circunstancias para o funcionamento ou não funcionamento das leis cósmicas. O homem pode possibilitar, em sua pessoa, o funcionamento das leis de Deus. Onde impera o livre arbítrio, nada é previsível. Deus quer dar ao homem os bens que em Deus estão, mas o homem pode obstruir o seu recipiente humano e não receber o dom do doador divino, e pode também abrir e alargar o seu recipiente ao ponto de receber em maior medida a dádiva divina. O recipiente humano, como se vê, é muito elástico, estreitável e alargável.
O pedir, orar, buscar, bater, têm por fim alargar cada vez mais o recipiente humano.
O velho adágio filosófico “o recebido está no recipiente segundo a capacidade do recipiente” ilustra bem esta verdade. Todo o finito recebe do Infinito aquilo que corresponde à medida maior ou menor da sua finitude. Se a capacidade do finito for igual a 10, o recipiente receberá 10; se for igual a 50, receberá 50; se for igual a 100, receberá 100. quem vai ao oceano com um copo, colherá um copo de água salgada; quem vai com um litro, colherá um litro; quem vai com um balde, colherá um balde – não por causa do oceano, mas por causa da capacidade do copo, do litro e do balde.
Para receber da Infinita Plenitude, deve o homem finito ampliar a sua finitude, que tem muitos graus, mas cuja potencialidade pode ser aumentada por seu livre arbítrio.
A ordem de orar, pedir, buscar, bater, nada tem que ver com Deus; tem que ver unicamente com o homem.
Suponhamos que alguém esteja, em pleno meio-dia, numa sala totalmente às escuras, de janelas fechadas. Para que entre luz solar, não é necessário dirigir-se ao sol, ou pedir que ele mande seus raios nesta direção; basta abrir uma janela na direção do sol, abri-la pouco para receber pouco sol, abri-la muito para receber muito sol.
Uma planta volta suas folhas ao sol para receber luz e calor e poder crescer, florescer e frutificar – mas o sol não é afetado por nada disso.
O livre arbítrio do homem é seu maior privilégio – e também o seu maior perigo. O uso ou falta de uso da sua liberdade torna o homem melhor ou pior. Pelo livre arbítrio é o homem melhor ou pior. Pelo livre arbítrio é o homem o seu próprio Deus – e também o seu anti-Deus, o creador do seu céu ou do seu inferno.
O destino cósmico depende de Deus somente – mas o destino humano depende do homem, não na zona independente do livre arbítrio, mas na zona da sua liberdade. As circunstâncias externas podem, sem dúvida, facilitar ou dificultar o exercício do livre arbítrio – mas nenhuma circunstância me pode obrigar a ser bom nem a ser mau.
Resumindo, podemos afirmar que estas duas parábolas, do amigo importuno e do juiz iníquo, são uma verdadeira apoteose do livre arbítrio humano.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

IMPUREZA DE FORA – IMPUREZA DE DENTRO (Mt 15, 1 ss.)

O QUE PURIFICA OU CONTAMINA O HOMEM NÃO SÃO AS CIRCUNSTÂNCIAS, MAS A SUBSTÂNCIA

Certo dia, uns escribas e fariseus se escandalizaram com os discípulos de Jesus, e perguntaram ao Mestre por que eles não observavam as tradições paternas e comiam sem primeiro lavar as mãos. Não se referiam os acusadores a simples preceitos de higiene física, mas atribuíam a essa usança um caráter de impureza moral.
Pelo que Jesus lhes replicou com a seguinte comparação:
“O que de fora entra no homem não o torna impuro, porque vai para o estômago e daí é lançado fora; mas o que de dentro sai do homem, isto sim, o torna impuro; porque do coração é que vêm maus pensamentos, homicídios, adultérios, luxúria, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias – e são estas as coisas que tornam o homem impuro. Mas, isto de não lavar as mãos antes de comer não torna o homem impuro”.
O que vale da impureza de fora ou de dentro, vale também, mutatis mutandis, da pureza.
Há quase 20 séculos que persiste, no seio da cristandade, a idéia de que objetos e atos externos possam conferir ao homem pureza ou impureza – quando, na realidade, somente a atitude interna do sujeito é que dá ao homem pureza ou impureza moral e espiritual.
Certas teologias eclesiásticas atribuem poder de purificação e santificação a determinados objetos e palavras, ideologia essa herdada dos antigos “Mistérios” do paganismo romano. O pecador desejoso de purificação espiritual se dirigia aos centros de iniciação da Delfos, Elêusis, Ísis, Osíris, etc.; ia ter com os magos e sacerdotes órficos ou pitagóricos; tocava em determinados “objetos sacros”, ou ouvia palavras rituais, que, na opinião dos iniciadores, purificavam o iniciado e faziam dele um iniciado, purificado e redimido.
A palavra grega “mysterion” é, em latim, “sacramentum”. Os sacramentos eclesiásticos são a continuação dos mistérios pagãos; a sua função é de magia ritualista. Os iniciadores continuam a ser, como em tempos antigos, os sacerdotes.
Mais tarde, prevaleceu, numa grande parte da cristandade, a magia judaica, que atribuía redenção e santificação espiritual ao sangue de animais sacrificados. Salomão, refere o 1 livro dos Reis, por ocasião da dedicação do templo em Jerusalém, mandou matar 120.000 ovelhas e 22.000 bois. Cada ano no monte Sion, o sacerdote reunia, à entrada do templo, o povo de Israel, mandava vir um cabrito, colocava as mãos sobre a cabeça dele e transferia para esse animal inocente os pecados do povo; depois, esse “bode expiatório” era morto, e, segundo a crença dominante, com a morte do animal morriam todos os pecados do povo.
A teologia cristã substituiu o animal inocente pelo único homem sem pecados, Jesus, e atribuiu ao sangue dele um efeito redentor e espiritualizador – embora o próprio Jesus nunca tenha considerado seu sangue como elixir de redenção.
Num dos setores mais recentes do criatianismo, a purificação não é atribuída a objetos e palavras, nem ao sangue de um “bode expiatório”, animal ou hominal, mas sim ao próprio homem pecador que, através de sucessivas reencarnações físicas, se purifica progressivamente dos seus pecados.
Em todos esses casos, a pureza do homem vem de fora dele, por meio de objetos, fórmulas ou pelos pais dele – vem sempre de um fator alheio: objetos, sangue, pais.
Entretanto, segundo o Evangelho do Cristo, não há alo-redenção, mas tão somente auto-redenção. O homem não é salvo por algo ou por alguém – o homem se redime, se salva, se purifica, se santifica ele mesmo a si mesmo, não pelo seu ego humano, mas sim pelo seu Eu divino, que é o Pai nele, o seu Cristo interno, o Reino de Deus, a luz do mundo, que nele está e que deve despertar.
Esta auto-redenção é Cristo-redenção, Teo-redenção. Em termos modernos, esta auto-redenção se chama auto-realização.
Quando Jesus responde ao doutor da Lei que o primeiro e maior de todos os mandamentos consiste em que o homem ame o Senhor seu Deus com toda a sua alma, com toda a sua mente, com todo o seu coração e com todas as suas forças – que é isto senão auto-redenção, auto-realização? É a purificação que vem de dentro dele, e não de fora dele. Pois, assim como, segundo as palavras do Mestre, toda a impureza vem de dentro do homem, também toda a pureza vem do seu interior. Se do seu ego humano vem a impureza, do seu Eu divino vem a pureza.
Toda a purificação e santificação do homem vem do despertamento do seu Eu divino, que também se chama “renascimento pelo espírito”.
Parece que uma elite da humanidade cristã de hoje está começando a compreender esta verdade fundamental da mensagem do Cristo.

A PÉROLA PRECIOSA (Mt 13, 45 ss.)

QUANDO O HOMEM DESCOBRE O REINO DOS CÉUS, NÃO SE INTERESSA MAIS PELOS REINOS DA TERRA

“o Reino dos Céus é semelhante a um negociante que procurava pérolas preciosas; descobriu uma pérola de grande valor, foi vender tudo que possuía e a comprou”.
As pérolas verdadeiras crescem no interior de certas conchas de moluscos, que vivem nas profundezas de mares tropicais, a pérola é uma secreção solidificada do corpo gelatinoso do molusco. Se não houver lesão alguma no corpo do molusco, não se forma pérola. Enquanto a pérola está encerrada na concha, não manifesta o seu maravilhoso brilho; somente quando exposta à luz solar é que revela o seu esplendor, que é o reflexo dos raios luminosos. Estes raios são de luz branca, ou melhor, incolor. A pérola, porém, reflete todas as cores do arco-iris, em diversas tonalidades opalescentes, devido à consistência peculiar da sua superfície nacarada.
Se o Reino dos Céus é semelhante a uma pérola preciosa, qual o traço de semelhança entre aquele e esta?
A pérola nasce nas profundezas do mar, mas a sua beleza só se revela à luz solar. E não é isto que se dá com o Reino dos Céus? Tem a sua sede nas profundezas da alma humana, e não na superfície da vida externa; mas o seu esplendor só se revela plenamente na luz da vida diária.
Não faz isto lembrar as palavras do Mestre sobre a “luz debaixo do alqueire”, e “a luz no candelabro”? a pérola da experiência mística se revela na vivencia ética; o Ser invisível se manifesta no agir visível.
As palavras de Mahatma Gandhi sobre a “verdade dura como diamante e delicada como flor de pessegueiro” bem poderiam lembrar a dureza da pérola e a sua beleza.
Para descobrir uma dessas pérolas preciosas, deve o homem mergulhar em tenebrosas e perigosas profundezas – e não é que o homem só encontra o Reino dos Céus em misteriosas profundidades? Quem nunca abandonou as cômodas superfícies do seu ego profano e mergulhou nas ignotas regiões do seu Eu divino; quem nunca abandonou as praias e os litorais de uma vida fácil e se aventurou ao alto-mar da Divindade, nada sabe da pérola preciosa da sua alma.
É estranho que a pérola só se forme depois que o molusco sofreu um ferimento – e quando foi que um homem encontrou a pérola do Reino dos Céus sem ter passado por uma experiência dolorosa? O próprio Cristo-Jesus não pôde entrar em sua glória sem passar pelo sofrimento e pela morte. Enquanto o homem não sofre, identifica-se com o seu ego humano; mas, quando submetido a um grande sofrimento, verifica a diferença entre seu ego humano e o seu Eu divino. O autoconhecimento, base da auto-realização, dificilmente acontece a um homem que não tenha passado por experiências dolorosas. A ilusória identificação do homem com o seu ego e o descobrimento da verdadeira alteridade do seu Eu, é, quase sempre, provocada por um sofrimento, sobretudo metafísico. “Duro te é recalcitrar contra o aguilhão”, dizia a voz misteriosa que Saulo de Tarso ouviu quando tombou às portas de Damasco, “e eu lhe mostrarei quanto terá de sofrer por meu nome”.
Esse mesmo Paulo chega ao ponto de afirmar que “sem efusão de sangue não há redenção”, isto é, sem sofrimento próprio não há cristificação.
A pérola do Reino dos Céus só começa a nascer depois que o homem foi ferido na sua egoidade humana.
Diz a parábola que o homem, depois de encontrar essa pérola preciosa, foi vender tudo o que tinha a fim de adquiri-la. “Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo”. “Quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus”.
Parece que há uma eterna incompatibilidade entre o ter e o Ser, como entre treva e luz, quantidade e qualidade. Antes de atingir a qualidade do seu Ser, corre o homem atrás das quantidades do ter ou dos teres. Mas, depois de descobrir o seu Ser qualitativo, torna-se ele indiferente a seus teres quantitativos. E, quando as circunstancias o obrigam a possuir certos objetos externos, possui-os com estranha leveza e serenidade; não se fanatiza por eles, nem jamais é possuído por aquilo que possui. O homem profano não possui as suas posses; é por elas possuído e possesse. A diferença entre possuidor e possuído é apenas de uma letrinha, o “r” – o “r” da redenção. Quando o possuído passa a ser possuidor não possuído, é ele remido da tirania do possuído e vive na soberania do possuidor.
Quem possui a pérola preciosa do Reino dos Céus, com alegria se despossui de todas as antigas posses, porque o novo possuimento o tornou imensamente feliz. Nada mais valem para ele as mais cobiçadas facticidades dos profanos, depois que se apoderou da Realidade do iniciado.
Quem entrou na posse da pérola preciosa do Reino dos Céus, esquece-se de todos os sacrifícios que fez para adquiri-la. Todos os caminhos estreitos e todas as portas apertadas desapareceram em face do jugo suave e do peso leve de uma felicidade sem limites.

O SEMEADOR (Mt 13, 3 ss.; Mc 4, 3 ss.; Lc 8, 5 ss.)

É NECESSÁRIO SEMEAR A VERDADE E O BEM, SEJA QUAL FOR O RESULTADO

A parábola do semeador é, sem dúvida, a mais popular de todas as parábolas de Jesus – e é também uma das poucas da qual o próprio Mestre deu explicação, a pedido de seus discípulos.
Em face disto, não nos compete tecer comentários elucidativos. Em vez disto, vamos chamar a atenção para certos aspectos da parábola que não foram explicados.
Se a semente é a palavra de Deus, e o semeador é o Filho do Homem, o próprio Cristo, como ele afirma, não é estranho que o mais sábio dos semeadores da melhor das sementes não tenha escolhido terrenos melhores para sua semeadura?
A julgar pelo texto do Evangelho, 75% das sementes estavam perdidos desde o início, e apenas 25% deram algum fruto – e mesmo este muito desigual; uma parte da semente deu 30, outra parte 60, e apenas uma pequena parcela deu 100 por um.
A semente que foi lançada à beira do caminho, nem sequer germinou; foi logo calcada pelos transeuntes, e as aves a comeram. Em Mateus essas aves significam o mau; em Marcos são o diabo; em Lucas é satanás – mas em todos os três evangelistas, referem-se ao ego humano, que, no Evangelho, é constantemente identificado com o mau, o diabo, satanás.
A semente que caiu ao meio do pedregulho e dos espinhos brotou, talvez floresceu, mas não frutificou, por falta de umidade e de luz suficientes.
Somente a última parte caiu em terra boa e produziu fruto, embora desigual.
Se dividirmos em parcelas iguais essas quatro partes, podemos admitir que ¾ partes tenham sido inutilizadas desde o início. Não sabia o semeador que assim aconteceria? E por que não escolheu melhor os seus terrenos?
Se o mais importante da parábola fosse o símbolo material, deveríamos tachar de imprudente o semeador pelo fato de lançar 75% da semente em terreno improdutivo.
Entretanto, o mais importante é o simbolizado espiritual, e o terreno não é o chão material, e sim o terreno da alma humana. A terra não tem liberdade e não é culpada pelo insucesso do crescimento e da frutificação. Na agronomia física, o procedimento de semelhante agrônomo seria imperdoável.
Mas a parábola trata de uma agronomia metafísica, trata do terreno imprevisível do livre arbítrio humano, onde nenhum semeador, nem mesmo o próprio Cristo, pode saber do resultado da sua semeadura. Se assim não fosse, por que teria Jesus escolhido Judas Iscariotes para seu apóstolo, sabendo da sua esterilidade espiritual?
Em se tratando do terreno do livre arbítrio humano, o procedimento do semeador do Evangelho é compreensível, e não podia ser outro. A melhor das sementes lançada pelo melhor dos semeadores pode ser totalmente frustrada. A liberdade humana pode reduzir a zero qualquer obra de Deus – não nos macrocosmo mundial, mas no microcosmo hominal. O destino cósmico obedece infalivelmente ao plano de Deus; nenhum ser hominal, angelical ou diabólico pode frustrar um átomo sequer do plano cósmico de Deus.
Totalmente diferente, porém, é o destino humano, que obedece ao livre arbítrio do homem. E onde há liberdade creatural termina, por assim dizer, a jurisdição divina.
A parábola trata exclusivamente da zona do livre arbítrio humano. E nesta zona o resultado da semeadura depende causalmente do homem. No terreno do livre arbítrio, o homem é Deus – e é também anti-Deus; é ele, e só ele, que determina o seu destino, como, aliás, também evidencia a história do joio no meio do trigo: o joio teve plena liberdade de ser joio até o fim, mas o resultado final da evolução foi a sua auto-extinção.
As leis cósmicas, ou divinas, respeitam a liberdade tanto dos bons como dos maus – mas o destino final é diametralmente oposto, como opostas são a vida eterna e a morte eterna.
Quem harmoniza livremente com a alma do cosmos, que é Deus, participa individualmente da própria eternidade universal da alma do Universo e quem se opõe livremente às leis cósmicas se exclui livremente da eternidade da alma do Universo, aniquilando-se, nulificando-se, reduzindo-se ao Nada existencial.
Pelo livre arbítrio participa o homem do Infinito positivo, do TODO – ou então do Infinito negativo, do NADA. Um ser livre pode integrar-se existencialmente no TODO – e pode também desintegrar-se no NADA existencial. Verdade é que o Nada da existência é o Todo da essência, mas não deixa de ser o Nada individual da creatura. Nenhuma creatura pode ser reduzida ao Nada da essência, mas sim ao Nada da existência individual, como são todas as creaturas da natureza. A imortalidade é a permanência do homem na existência individual, ao passo que as creaturas mortais da natureza, quando morrem, perdem a sua existência individual e recaem na essência Universal.
Todo o homem é potencialmente imortal (imortalizável), e pode tornar-se atualmente imortal (imortalizado). A imortalidade atual – bem como a liberdade atual – são uma conquista da consciência, mas não um presente de berço.
A parábola do semeador, a par das do joio e dos talentos, são apoteoses do livre arbítrio humano e da creatividade desse livre arbítrio. Certos cientistas modernos negam a liberdade humana, que tacham de “mito” ou ilusão. Quase todos eles se baseiam em experiências de laboratório. Esquecem-se, porém, de que a imensa maioria da humanidade não conquistou liberdade atual, mas possui apenas liberdade potencial. Provavelmente, todas as cobaias que passaram por seus laboratórios e foram submetidas aos testes pelos cientistas, não eram atualmente livres, e a conclusão generalizada referente à não-liberdade do homem em geral é fundamentalmente errônea. Se a vida de um Buda, de um Cristo ou de um Gandhi tivessem sido testadas, bem diferente teria sido o resultado apurado por esses cientistas superficiais.
Um homem normal e adulto que não atualizou a sua liberdade potencial é culpado, porque, quem pode deve, e quem pode e deve e não faz crea débito, culpabilidade. Se um homem normal e adulto não é livre, é ele culpado dessa falta de liberdade – e toda a culpa gera sofrimento. O mal é o eco da maldade, é a reação das leis cósmicas contra a maldade humana.
Os três terrenos humanos da parábola que frustraram a frutificação da semente de Deus eram culpados dessa nulificação, como, aliás, o próprio Jesus faz ver na explicação que, a pedido de seus discípulos, deu dessa parábola.
As três classes de obstáculos enumerados por Jesus, que frustraram a frutificação da semente se referem todos ao ego humano; o homem-ego abusou do seu livre arbítrio, não o desenvolveu até à maturidade do seu Eu espiritual, e por isto a semente da palavra de Deus não frutificou. Como já dissemos, esse ego é chamado o mau, o diabo, satanás.
Apenas uma pequena parte da semente produziu fruto total, porque apenas uma diminuta parcela da humanidade chegou à plena maturidade do seu livre arbítrio, oferecendo terreno ideal para a frutificação da semente divina.
*
Suponhamos que a frustração da semeadura, em vez de ¾, fosse total, tivesse acabado em 0 – será que o semeador teria continuado a semeadura?
Existe na filosofia oriental uma palavra sânscrita chamada falasanga, que quer dizer “mania de resultados”. Todo homem ego sofre dessa mania: só trabalha por amor a algum resultado palpável. Trabalhador sem esperança de resultado, é para o ego pura estupidez e absurdidade. Alguns, é verdade, não esperam resultados materiais, dinheiro, propriedade, etc., mas esperam resultados de caráter social, mental ou emocional, como aplausos, reconhecimento, gratidão, um nome de benfeitor no jornal, na rádio, na televisão, ou perpetuação da sua beneficência em forma de um monumento, duma placa comemorativa, duma inscrição. Outros egoístas, altamente sublimados, não esperam nada disto no mundo presente, mas trabalham na certeza de que, no outro mundo sejam recompensados por Deus em forma de eterna glória e felicidade. Quase todos os homens virtuosos fazem esta negociata com Deus.
Todos eles são egoístas, todos praticam falasanga, terrestre ou celeste; os mais avançados esperam recompensa após-morte.
Somente o homem capaz de semear o bem sem nenhuma segunda intenção, sem especular com retribuição alguma, nem antes nem depois da morte – esse somente deixou de ser egoísta, seria totalmente liberto das tiranias do ego, manifestas ou camufladas.
A parábola do semeador tende a conduzir o homem a essa libertação total, a semear a semente da Verdade e do Bem sem a menor esperança de assistir a uma festa de colheita.
Mas, se a semeadura falhar 100%, que finalidade teria ainda esse trabalho?
Em primeiro lugar, teria a finalidade suprema de uma completa auto-realização, que vale mais que todo o Universo, porque um único valor vale mais que todos os fatos, um átomo de qualidade eclipsa mundos inteiros de quantidade.
Além desse valor supremo da auto-realização do próprio semeador, liberto de qualquer egoísmo, essa atitude transbordaria energias imensas para outros seres, porquanto nenhuma energia se perde, todas as energias se transformam. Esta lei física da “constância das energias” vale também para a metafísica. O modo ideal de fazer bem à humanidade consiste em ser bom, isto é, plenamente liberto de qualquer resquício de egoidade e egoísmo.
A parábola do semeador convida o homem a ser incondicionalmente bom, a semear a Verdade e o Bem sem nenhuma segunda intenção de obter resultados objetivos. Basta-lhe a consciência de ter cumprido o seu dever de auto-realização ou aperfeiçoamento da sua substância divina.

AS VIRGENS SÁBIAS E AS VIRGENS TOLAS (Mt 25, 1 ss.)

É NECESSÁRIO MANTER ACESA A LUZ PERMANENTE DO EU DIVINO, E NÃO APENAS ACENDER LAMPEJOS INTERMITENTES DO EGO HUMANO

“O Reino dos Céus é semelhante a dez virgens”.
Nesta conhecida parábola fala Jesus de almas humanas à espera das núpcias místicas com o divino Esposo. Em plena noite da vida terrestre aguardam elas o advento do conúbio espiritual.
Essas jovens são “parthenoi”, virgens, que ainda não conceberam o Cristo; cinco delas são idôneas, e cinco não, para essa concepção mística.
Todas essas virgens levam consigo as suas lâmpadas, ainda não acesas, mas ao alcance da mão, durante o sono. A diferença entre umas e outras não está nas lâmpadas, que todas têm, mas sim no conteúdo delas: cinco têm óleo em suas vasilhas, juntamente com as lâmpadas, ao passo que cinco só têm as suas lâmpadas vazias, sem óleo nas vasilhas. A sapiência de umas consiste na presença desse óleo, e a insipiência das outras está na ausência desse combustível.
Em todos os tempos, foi o óleo de oliva considerado como símbolo de espiritualidade ou experiência mística. No Antigo Testamento, eram ungidos com óleo os sacerdotes, os profetas e os reis, como pessoas consagradas a Deus.
A palavra grega para ungir é chriein, cujo particípio passado é christós (ungido). Nas paredes das catacumbas de Roma se encontra freqüentemente o monograma do christós – CHR, que em grego são apenas duas letras XP, (CX = CH, P = R), geralmente entrelaçadas em forma de XP, as iniciais do nome Cristo.
A pessoa humana de Jesus foi ungida, totalmente permeada pelo Espírito de Deus, que é o Cristo Cósmico, o divino Logos ou Verbo.
As cinco virgens sábias eram penetradas pelo espírito de Deus, pela consciência da presença do Cristo, mesmo em plena noite.
Óleo é um combustível que alimenta a chama, e, enquanto houver óleo, o fogo não se apaga. A experiência mantém aceso o espírito de Deus na alma.
As cinco virgens sem óleo acendem as suas lâmpadas, mas essas logo se apagam, por falta de combustível. Quem não tem experiência expiritual pode ter lampejos intermitentes, mas falta-lhe a luz permanente da consciência de Deus. O ego humano de boa vontade tem, de vez em quando, ímpetos espirituais, até o ponto de derramar lágrimas de emoção e doçura – mas toda a boa vontade do ego humano não é sabedoria do Eu divino; esta consiste numa atitude permanente, e não apenas em atos transitórios; a sabedoria divina é uma nova dimensão da consciência do ser, e não apenas um modo de agir; é a consciência nítida “Eu e o Pai somos Um... Não sou eu que faço as obras, é o Pai em mim que as faz; de mim mesmo eu nada posso fazer”.
O óleo da sapiência divina é auto-conhecimento, que se revela em auto-realização; é a experiência intuitiva da “verdade libertadora” sobre nós mesmos.
O conhecimento meramente analítico-intelectual do homem profano é como um lampejo em plena noite, uma luz momentânea entre duas trevas.
Todas as dez virgens adormeceram, enquanto aguardavam o Esposo. A vida terrestre é uma espécie de sono. A natureza infra-humana jaz num sono total; o homem comum vive num sono parcial: está mentalmente acordado, porém espiritualmente adormecido. Somente o homem de consciência espiritual está plenamente acordado.
O óleo, mesmo antes de transformado em luz, é potencialmente luz, é lucificável. O homem deve adquirir a idoneidade de poder atualizar a qualquer momento a sua potencialidade espiritual. O que é decisivo é que ele tenha em si o óleo dessa idoneidade espiritual. A aquisição e o desenvolvimento dessa idoneidade lucificável é a razão de ser da vida terrestre do homem. Sem isso, a vida é um circulo vicioso, uma grande falência.

Ocorre na parábola um episódio que revela toda a insipiência das virgens tolas: pedem às suas colegas sapientes que lhes emprestem do seu óleo, para alimentarem as suas lâmpadas que se apagam. Somente um tolo pode proceder tão tolamente de pedir experiência espiritual emprestada. Experiência mística, sabedoria espiritual não é transmissível de pessoa a pessoa; só é adquirível de dentro do próprio ser, como bem fazem ver as virgens sábias: ide e adquiri óleo para vós mesmas.
Nenhum Mestre espiritual, nenhum guru, pode transferir a sua experiência espiritual a seu discípulo; pode apenas mostrar-lhe o caminho por onde o iniciado possa adquirir iniciação, possa tornar-se um iniciado, um auto-iniciado. Não existe nenhuma alo-iniciação, só existe auto-iniciação. Se assim não fosse, teria Jesus iniciado seus discípulos; mas, segundo o Evangelho, ele não iniciou ninguém. Os discípulos de Jesus, e outros, se auto-iniciaram na gloriosa manhã do Pentecostes, na ausência do Jesus visível, mas pela presença do Cristo invisível. Auto-iniciação é o despertamento do Cristo interno. Um Mestre externo pode preludiar essa eclosão do Cristo Cósmico, pode mesmo facilitá-la, mas não a pode realizar no outro. A idéia de alo-iniciação representa, talvez, um dos maiores equívocos da humanidade, e a sua prática é uma grande fraude, uma tentativa de contrabando no Reino dos Céus. “O que vem de fora não torna o homem puro nem impuro, mas somente o que vem de dentro do homem”.

As cinco virgens tolas vão, de fato, adquirir óleo, mas, quando voltam está fechada a porta do banquete nupcial, e elas não conseguem realizar as suas núpcias com o divino Esposo.
Aqui termina a parábola, mas deixa a porta aberta para conclusões tácitas. Se as cinco virgens regressaram com o óleo da experiência adquirida, não teriam elas o direito de serem admitidas ao banquete nupcial do Reino de Deus? Tanto mais que a parábola diz que “o Reino dos Céus é semelhante a dez virgens”, e não apenas a cinco.
É lícito concluir que as cinco virgens retardatárias tenham entrado no Reino dos Céus em outro ciclo evolutivo, posterior ao das suas colegas.
Se é verdade que, na casa do Pai celeste há muitas moradas, não seria lícito admitir a possibilidade de uma evolução em períodos após a existência terrestre?
Certas teologias só admitem a possibilidade de conversão e redenção para os poucos decênios da vida terrestre – como se o livre arbítrio fosse um atributo do corpo físico dissolvido pela morte. Se o livre arbítrio é um atributo da alma sobrevivente à morte, porque não poderia o homem realizar a sua redenção em todo o tempo da existência da sua alma livre? Seria absurdo supor que, durante uns poucos decênios de vida terrestre o homem possa decidir o seu destino para toda a eternidade.
Entretanto, é razoável e prudente que o homem inicie, aqui na terra, essa tarefa, que aprenda pelo menos o abc da sua realização espiritual, para continuá-la em outras regiões do Universo.

O ADMINISTRADOR DESONESTO (Lc 16, 1 ss.)

USAR PARA FINS ESPIRITUAIS OS BENS MATERIAIS

A parábola que maior incompreensão, desapontamento, e até revolta tem causado no mundo cristão é sem dúvida a do administrador fraudulento. A tal ponto chegou a incompreensão, que muitos leitores chegam a duvidar que Jesus tenha proferido essa parábola; muitos acham que se trata de uma interpolação posterior, feita por algum autor desconhecido.
O auge do escândalo está nas palavras seguintes de Jesus: “Granjeai-vos amigos com as riquezas da iniqüidade, para que, quando vierdes a falecer, vos recebam nos eternos tabernáculos”.
É um convite manifesto, dizem os revoltados, para a fraude, a desonestidade, em flagrante contradição com toda a doutrina de Jesus.
Esta incompreensão, ou mesmo descompreensão, das palavras do Mestre “granjeai-vos amigos com as riquezas da iniqüidade” se baseia na suposição errônea de que possa haver iniqüidade ou maldade nas riquezas, ou em outro objeto físico qualquer.
Não existe, em toda a natureza, um único objeto que seja moralmente mau, ou moralmente bom.
Bondade ou maldade moral são atributos único e exclusivo de seres dotados de livre arbítrio. Creatura que não tenha “comido do fruto da árvore do bem e do mal”, como o livro do Gênesis chama o livre arbítrio, não pode ser moralmente boa nem moralmente má; não pode cometer atos bons nem atos maus. Um pedaço de metal ou farrapo de papel, chamado dinheiro, é algo moralmente neutro, nem bom nem mau.
Se Jesus tivesse dito “granjeai-vos amigos com a iniqüidade das riquezas” não teríamos como justificar suas palavras, porque teria recomendado fraudulência. Mas o Mestre não disse isto. O que ele recomenda é algo de perfeita sapiência e retitude: recomenda a seus discípulos que usem o objeto neutro dinheiro para praticar o bem – o mesmo objeto neutro que aquele administrador usou para praticar iniqüidade. Quem praticou o mal não foi o dinheiro do administrador, mas sim o administrador, o seu livre arbítrio de homem, e não o livre arbítrio do dinheiro, que não existe. Nenhum objeto, seja ele qual for, pode praticar o mal (ou o bem) porque não há objeto dotado de livre arbítrio. Todo e qualquer objeto animado ou inanimado – mineral, vegetal, animal – é moralmente neutro, como já dissemos, nem bom nem mau. Aqui na terra, é o homem a única creatura capaz de ser boa ou má, segundo o uso ou abuso da sua liberdade.
Assim como o administrador se serviu do dinheiro para fazer o mal, assim, recomenda Jesus, deve seu discípulo servir-se do dinheiro (ou outro objeto qualquer) para fazer o bem.
Toda a dificuldade do homem, aqui na terra, está em assumir atitude correta em face dos bens materiais.
Três atitudes são possíveis: abusar, recusar, usar.
O homem profano considera os bens terrestres como um fim em si mesmos – isto é abusar.
O homem místico não se serve dos bens materiais nem como fim nem como meio – isto é recusar.
O homem de consciência cósmica não considera os bens terrestres como um fim, mas sim como meios para um fim superior – e isto é usar.
Na parábola, o administrador abusou dos bens materiais, cometendo injustiça. Jesus recomenda a seus discípulos que se sirvam desses mesmos bens como meios para um fim superior, e isto é usar. A atitude do uso, silencia a recusa.

*

Nesta parábola aparece a maravilhosa atitude cósmica do Nazareno. Se ele fosse um profano, teria recomendado o abuso do dinheiro para o mal, como fez o administrador. Se ele fosse apenas um místico, teria simplesmente recomendado a recusa, ou seja o não-uso, do dinheiro como sendo mau em si mesmo, “excremento de satanás”, como diz um escritor moderno. Mas, como Jesus não era um profano, nem um místico, mas o homem cósmico por excelência, não recomendou nem o abuso, nem a recusa, mas sim o uso correto do dinheiro.
Não são os bens materiais em si que possam granjear amigos no mundo espiritual,mas é o uso correto que deles fizermos. Todo o objeto é espiritualmente neutro, indiferente; mas o sujeito, o livre arbítrio do homem, lhe dá valor positivo, ou desvalor negativo. A atitude boa em face do “pouco” dos bens materiais torna o homem bom no “muito” dos bens espirituais. O valor do sujeito valoriza o sem-valor do objeto.
Aliás, toda a vida do Nazareno é caracterizada por essa consciência cósmica, eqüidistante do abuso dos profanos e da recusa dos místicos; ele não abusa nem recusa, mas simplesmente usa os bens materiais. Ele não é da escola do ricaço Epicuro, nem do mendigo Diógenes; não mora em palácio nem em tonel; não se veste com seda e púrpura, nem vive de tanga ou sem tanga; não vive no luxo nem no lixo. Jesus não é um profano gozador como Herodes, nem um asceta renunciador, como o Batista; ele come como todos comem; ele se veste como todos se vestem. Logo no início de sua vida pública vai a uma festa de casamento, onde transforma água em vinho, e vinho ótimo; senta-se à mesa com publicanos e pecadores, aceita a ardente homenagem de Maria de Betânia e as entusiásticas ovações populares no domingo de ramos – e apesar de tudo isto, pode dizer: “As raposas têm suas cavernas, as aves têm os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”.
A verdadeira renúncia não é, em primeiro lugar, uma renúncia externa, mas sim um uso sem abuso. Possuir sem ser possuído – isto é renúncia, pobreza pelo espírito. Pode um milionário não ser possuído por aquilo que possui, e pode um mendigo ser possuído por aquilo que não possui, mas deseja desregradamente possuir. Mais importante que possuir ou não possuir é saber como possuir ou não possuir. Já na antiguidade era esta a grande sabedoria dos filósofos estóicos.
Abusar é proibido.
Recusar é permitido.
Usar é recomendado.
A parábola do administrador desonesto é a mais deslumbrante apoteose do espírito cósmico do Cristo.

OS TALENTOS (Mt 25, 14-33; Lc 19, 11 ss.)

APOTEOSE DO PODER CREADOR DO LIVRE ARBÍTRIO

O Reino dos Céus é semelhante a um homem que, em vésperas de empreender longa viagem, chamou seus servos e lhes distribuiu o seu dinheiro para negociarem com ele em sua ausência.
Ao primeiro servo entregou 5 talentos. O talento era uma moeda grega que equivalia a cerca de 10.000 cruzeiros nossos; quer dizer, o primeiro servo recebeu cerca de 50.000 cruzeiros para negociar.
Ao segundo servo deu 2 talentos, cerca de 20.000 cruzeiros.
Ao terceiro servo deu 1 talento, ou 10.000 cruzeiros nossos.
Deu-lhes ordem que negociassem com esses cabedais até que ele voltasse da viagem.
E partiu.
Depois de muito tempo, regressou da viagem e chamou à conta os três servos. O primeiro se apresentou prontamente e disse: “Os teus cinco talentos renderam cinco; eis aqui dez talentos”. Respondeu-lhe o senhor: “Muito bem, servo bom e fiel, porque foste fiel no pouco, constituir-te-ei sobre o muito; entra no gozo do teu senhor”.
Aparece o servo que recebera 2 talentos e apresenta 4, repetindo quase as mesmas palavras, e ouviu do seu senhor a mesma resposta.
Finalmente aparece o terceiro servo, que recebera apenas um talento e faz um longo discurso sem entregar nada de seu, mas devolvendo apenas o talento recebido. O discurso fútil dele é o seguinte: “Bem te conheço, senhor; tu és um senhor severo, colhes o que não semeaste e ajuntas o que não espalhaste; por isso tive medo de ti e enterrei o teu talento – aqui o tens”.
Este servo recebeu de Deus a sua creaturidade, como os outros, enterrou-a, e devolveu-a tal qual, sem lhe acrescentar nada da sua creatividade humana; devolveu o que recebera de Deus, sem nada lhe acrescentar de seu próprio. E é terrível a resposta do senhor: “Servo mau e preguiçoso! Com tuas próprias palavras eu te condeno; se tu sabias que eu colho o que não semeei e ajunto o que não espalhei, porque não fizeste frutificar o talento que te dei, para que eu o recebesse com juros? Tirai-lhe o talento que tem, porque quem tem receberá mais e terá em abundância; mas quem não tem perderá até aquilo que tem”.
Assim diz literalmente o texto grego. Mas o tradutor da Vulgata Latina diz: “Quem não tem perderá aquilo que parece ter” (quod videtur habere). Evidentemente, o tradutor achou por demais absurda a frase “quem não tem perderá até aquilo que tem”, e suavizou o texto dizendo “que parece ter”, que é o sentido oculto, embora não seja o texto explícito. Esta modificação foi feita no texto de Mateus; mas no texto paralelo de Lucas o tradutor reproduziu exatamente o texto grego: “Quem não tem perderá até aquilo que tem”. Ninguém possui realmente aquilo que recebeu, mas somente aquilo que ele mesmo creou.
Aqui poderíamos citar, como equivalente, as conhecidas palavras de Goethe: “Was du ererbt Von deinen Vaetern, erwirb es, um es zu bezitzen” (o que herdaste de teus pais adquire-o para o possuíres). De fato, não possuímos realmente o que apenas herdamos ou recebemos de outrem; só possuímos realmente aquilo que adquirimos ou conquistamos com o poder creativo do nosso livre arbítrio. A nossa creaturidade nos foi dada por Deus, e por isso não é realmente nossa; somente é nosso, profundamente nosso, aquilo que creamos com o poder do nosso livre arbítrio, com a nossa genuína e autêntica creatividade humana.
Os dois primeiros servos não devolveram ao senhor apenas a creaturidade, que dele haviam recebido; mas ofereceram-lhe algo genuinamente deles, o produto da sua própria creatividade. E é por isto que são chamados “servos bons e fiéis”, e entram no gozo de seu senhor. Estes dois servos se auto-realizaram, como diríamos em linguagem moderna. Os segundos cinco e dois talentos não são do senhor, mas são desses servos auto-realizados.
O que os teólogos chamam “salvação” tem de ser transformado hoje em dia em “auto-realização”; não existe alo-redenção, só existe auto-redenção, auto-realização, que é o despertamento das potencialidades latentes na alma humana até a sua total atualização.
O terceiro servo, que devolveu apenas a sua creaturidade, sem um vestígio de creatividade, é chamado “servo mau e preguiçoso”, e, pior de tudo, perdeu aquilo que tinha recebido, mas não era seu, a sua creaturidade. Perdeu a sua potencialidade creativa, porque não a atualizou em Realidade creadora. Perdeu o seu livre arbítrio, a sua natureza humana, que, sem livre arbítrio, deixa de ser humana. Degradou-se a um infra-homem, deixou de ser homem. Sucumbiu à “morte eterna” da sua individualidade humana. Quem tem creaturidade humana, mas não a transforma em creatividade, pelo poder do seu livre arbítrio, esse perderá até a sua creaturidade humana. As leis eternas da Constituição Cósmica (ou Divina) não dão potencialidade a nenhum ser para não serem transformadas em atualidades, durante o ciclo total da existência da creatura, ciclo evolutivo que, certamente, não compreende apenas os poucos decênios da vida terrestre. Se o homem, durante o ciclo total da sua existência, terrestre e extraterrestre, não se realizar, ele se des-realiza; se não se integrar no infinito, ele se desintegra, perde a sua individualidade.
Os dois primeiros servos foram “fiéis no pouco”, nas suas potencialidades creaturais, e por isto receberam “o muito”, o resultado das suas realidades creadoras.
Neste sentido, escreveu um filósofo europeu de nossos dias: “Deus creou o homem o menos possível, para que o homem se possa crear o mais possível”.
Esta parábola é uma apoteose da onipotência do livre arbítrio humano. O homem, quando sai das mãos de Deus, não é realizado, mas apenas realizável. Está aqui na terra, ou em outros mundos, para realizar plenamente a sua natureza realizável. Se se realizar, é servo bom e fiel e entra no gozo do seu senhor, integra-se na Divindade pela imortalização individual. Se não realizar a sua natureza realizável, neste ou em outros mundos, acaba por se desrealizar ou aniquilar.
A parábola dos talentos pode ser considerada como sendo a quintessência da metafísica cósmica do Evangelho do Cristo. Há quase 2000 anos que a mensagem do Cristo é mencionada pelas igrejas como se fosse uma teologia, quando, na realidade, é a maior Filosofia Univérsica que já apareceu sobre a face da terra.
Há quem negue a possibilidade de o homem sucumbir à morte eterna, a uma extinção definitiva, porque, dizem, a alma é imortal. Entretanto através de todo o Evangelho consta essa possibilidade. A alma não é imortal, mas é imortalizável.
A imortalidade potencial é um presente de berço, mas a imortalidade atual é uma conquista da consciência. A alma imortalizável se imortaliza pelo poder creador do livre arbítrio.
É esta a grandiosa mensagem da parábola dos talentos.

A TORRE E A EMPRESA BÉLICA (Lc 14, 28 ss.)

PELA RENÚNCIA VOLUNTÁRIA A TODOS OS TERES REALIZA O HOMEM O SEU SER

Entre os seguidores de Jesus havia muitas pessoas de boa vontade, dispostas a serem virtuosas – mas havia poucos sapientes, dispostos a se desapegarem de todo e qualquer apego ao ego humano para se entregarem sem reservas ao Eu divino.
A esses discípulos medíocres, indecisos, vacilantes, propõe o Mestre duas pequenas parábolas para mostrar que, com essas meias medidas, não alcançariam a meta suprema, a redenção ou auto-realização.
Como muitas outras parábolas, também estas duas, referentes à construção de uma torre e ao empreendimento bélico, são flagrantemente paradoxais, incompreensíveis à luz do nosso ego humano.
Quando alguém quer construir uma torre – digamos, um arranha-céus de trinta andares – não deve começar a construção sem primeiro fazer um orçamento cuidadoso, calculando se tem os recursos suficientes para terminar o edifício; do contrário, terá de deixar a obra inacabada, com grandes prejuízos, e, ainda por cima, se expõe ao escárnio dos vizinhos, que o tacharão de inepto e tolo.
Ou, se alguém resolver declarar guerra a outro país, deve calcular primeiro se, com dez mil soldados, pode sair ao encontro de um exército de vinte mil; do contrário, depois de iniciar a guerra, e vendo-se inferior ao inimigo, será obrigado a solicitar convênio de paz, que, como se sabe, são sempre humilhantes e desastrosos para o derrotado.
Até aqui, Jesus falou como um verdadeiro perito em assuntos militares. Tem-se mesmo a impressão de ouvir falar um moderno Rockefeller ou Einsenhower. E o leitor de nossos dias esperaria que o Mestre prosseguisse na mesma linha de lógica e perícia, recomendando ao construtor da torre que arranjasse o dobro ou triplo do dinheiro para terminar o seu arranha-céu inacabado; esperaríamos que aconselhasse ao general do exército de dez mil soldados que duplicasse o efetivo das suas forças militares, para poder derrotar o inimigo que dispõe de vinte mil soldados.
É o que todo homem sensatamente egocêntrico esperaria.
Mas, com imenso espanto nosso, o Mestre propõe exatamente o contrário. Em vez de aumentar os recursos para a vitória final, manda ele diminuí-los, não pela metade, mas até zero – a fim de poder vencer... Manda subtrair em vez de adicionar.
A conclusão das duas parábolas, da torre e da guerra, é a seguinte:
“Do mesmo modo, não pode nenhum de vós ser meu discípulo se não renunciar a tudo que tem”.
O Mestre manda reduzir a zero tudo que o homem tem, ou pode ter, a fim de intensificar ao máximo o seu Ser. Os seus teres são o motivo da sua derrota, o seu Ser é garantia de vitória. Ter algo é desastroso – ser alguém é glorioso. O ter é inversamente proporcional ao ser.
Quem tem muitos algos não os deve aumentar para vencer, mas deve renunciar a todos eles, a fim de ser alguém – e só assim é que pode construir a torre da sua auto-realização e derrotar os inimigos da mesma, o ego e seus aliados.
“Bem-aventurados os pobres pelo espírito – porque deles é o Reino dos Céus”.
É deveras estranha, e positivamente incompreensível, essa linguagem dos grandes Mestres da sapiência e da potência. A consciência deles habita numa dimensão totalmente diferente da nossa; para nós, o poder está na quantidade – para eles, na qualidade. Para nós, poder é ter muito – para eles, renunciar voluntariamente ao ter é realizar o ser.
Que sabemos nós do Ser? É uma palavra abstrata, e nada mais – para os Mestres o Ser é a quintessência de todo o poder.
Há quase 2000 anos que esta sapiência apareceu na face da terra – mas quem a compreendeu? Dentre os que se dizem discípulos do Cristo não há 1 entre 1.000.000 que compreenda e viva a realidade do seu ser, do seu Eu, da sua alma. Ser cristão é, para nós, uma convenção social, uma rotina tradicional – não é uma experiência interior.
Nos últimos tempos, está prevalecendo cada vez mais a ânsia do autoconhecimento e da auto-realização. Quase 2000 anos de chamado cristianismo nos alheiaram do Cristo; mas a alma humana, crística por sua própria natureza, tem veementes anseios de cristificação.
Quem lê o Evangelho superficialmente tem a impressão ingrata de que o Cristo vivia totalmente no mundo do além, e nada queria saber do mundo do aquém; quantas vezes repete ele “quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo”. Em face desse aparente além-nismo, o grosso da humanidade, que não pode viver sem ter algo, desanima e acaba por se convencer de que a mensagem do Cristo é para uma pequena elite de privilegiados, de místicos escapistas, e que a humanidade como tal não pode realizar essa mensagem transcendental.
Esta é a impressão à primeira vista, e muitos nunca conseguem emancipar-se dessa impressão desanimadora; os aquém-nistas nada sabem do além-nismo. Limitam-se apenas a certas práticas cristãs externas, ou se tornam totalmente indiferentes à mensagem do Cristo.
Somente uma visão e uma vivência mais profunda do Evangelho nos convence de que Jesus não era um espiritualista místico, um além-nista alheio às coisas do aquém. O que nele havia de diferente e incompreensível é o modo como o homem deve possuir as coisas materiais. Diz ele, com absoluta clareza: “Vosso Pai celeste sabe que de tudo isto haveis mister”, isto é, que tendes necessidades das coisas materiais, casa, roupa, alimentos, etc., para uma vida dignamente humana; ele não nega absolutamente que o homem deva possuir certos bens e certo conforto material; Jesus nunca professou a filosofia nihilista de Diógenes, que fazia consistir a felicidade em não ter nada e não desejar nada.
O que há de estranho na mentalidade do Nazareno é uma certa matemática desconhecida: ele deriva o ter material do ser imaterial. Para ele, a raiz de todos os teres é o Ser; os algos, ou objetivos da vida, vêm da consciência do alguém, da consciência da nossa razão-de-ser.
Resumindo em poucas palavras a filosofia cósmica, diz ele: “Buscai, portanto, em primeiro lugar o Reino de Deus e sua harmonia – e todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo”.
Não diz que não necessitamos das outras coisas, dos bens materiais, para um conforto normal da vida; diz que estas coisas materiais nos serão dadas de presente, e não em consequencia dessa desenfreada lufa-lufa que caracteriza a vida dos profanos, que não buscaram o Reino de Deus, isto é, a realização do seu Eu divino.
Jesus não condena o fato de termos bens materiais, mas sim o modo errôneo como o homem profano procura apoderar-se deles e possuí-los.
Jesus nunca sofreu falta de nenhum bem material digno de uma vida humana; se renunciou a muitos deles, fê-lo livremente, e não compulsoriamente; se diz que não tem onde reclinar a cabeça, é porque não sentia necessidade desse conforto do ego em face da plena realização do seu Eu crístico.
Logo no início da sua vida pública, vai ele a uma festa de casamento, onde oferece aos convivas 600 litros do melhor vinho que já se bebera em Canaã da Galiléia, como afirma o mordomo da festa; aceita convite para jantares, até de publicanos e pecadores; aceita as homenagens de Maria de Betânia, aceita uma verdadeira apoteose nacional no domingo de ramos; anda muito bem vestido, ao ponto de os quatro soldados romanos que guardavam a cruz repartirem entre si as vestimentas dele, e, sobrando ainda a túnica inconsútil, lançam sobre ela a sorte.
Jesus nunca andou de tanga, como certos místicos orientais, nem sem tanga como Diógenes.
Há, na pessoa do Nazareno, um perfeito equilíbrio entre o seu Eu espiritual e o seu ego humano. Ele não é um materialista profano, nem um espiritualista místico – ele é o homem cósmico por excelência. Dizer que não levou vida integralmente humana por não ter casado, é desconhecer totalmente a natureza real do homem. A libido é herança nossa do mundo animal, que um homem superior pode dispensar sem deixar de ter verdadeiro amor humano. É impressionante o amor que Jesus tinha à sua discípula predileta Madalena; idem a Maria de Betânia e ao discípulo amado João, que o acompanha até ao Calvário.
Todas as coisas dignamente humanas serão dadas ao homem superior que realiza em si o Reino de Deus.
Mas em primeiro lugar o homem tem que renunciar a tudo que tem, para construir a torre da sua auto-realização e derrotar o seu ego. O homem tem que renunciar a tudo que seu ego humano tem, a fim de construir a torre do seu Eu espiritual e alcançar a vitória sobre seus inimigos.
Com muita sabedoria diz Krishna na Bhagavad Gita, o ego é o pior inimigo do Eu, mas o Eu é o melhor amigo do ego... O ego é um péssimo senhor – mas é um ótimo servidor.
Quando o ego humano se integrar totalmente no Eu divino então será ele altamente beneficiado.
É esta a suprema sapiência da parábola da construção da torre e da empresa bélica.

O FERMENTO (Mt 13, 33; Lc 13, 20 s.)

A EXPERIÊNCIA MÍSTICA TRANSFORMA TODAS AS VIVÊNCIAS PROFANAS

Esta parábola abrange apenas duas ou três linhas. Nasceu, certamente, na cozinha da modesta casinha de Nazaré, onde Maria preparava a massa de farinha para o pão do dia seguinte; e o jovem carpinteiro acompanhava interessado e curioso, todo o processo. Durante a noite, um punhadinho de fermento vivo levedou grande massa de farinha, fazendo-a crescer, crescer – até que toda a massa compacta se transformasse na massa leve e porosa para o pão do dia seguinte.
E logo surgiu na alma intuitiva de Jesus o simbolizado espiritual correspondente a esse símbolo material. Não era isto mesmo que aconteceria com o fermento sagrado do Reino de Deus que ele ia lançar na massa da humanidade profana?
O fermento atua lentamente, silenciosamente, constantemente, de dentro para fora. Ninguém vê a causa invisível dos efeitos visíveis. A qualidade permeia totalmente as quantidades. Do invisível vem o visível.
O fermento é o elemento divino no homem que os hindus chamam Atman, os livros sacros Alma, a nossa filosofia designa pelo Eu central, e Jesus denomina o “Reino de Deus no homem”.
As três medidas de farinha simbolizam os três aspectos do ego humano: material, mental e emocional.
Para que haja transformação do ego pelo Eu, do homem profano pelo homem sacro, deve haver contacto direto entre esses invólucros periféricos da natureza humana e seu conteúdo central; deve haver uma interpenetração entre o seu Eu divino e seus egos humanos. O homem profano, que só conhece o ego e ignora o Eu, não pode levedar-se por si mesmo. O homem místico, que aceita o Eu e rejeita o ego, não pode transformar este, por falta de contacto; pode intensificar o fermento espiritual, mas não transforma os elementos do ego hominal. O homem cósmico, porém, permeia as três medidas do ego humano pelo fermento do Eu divino; verificará uma paulatina transformação da vida externa pela vitalidade da essência interna. Em vez de um resignado conformismo, ou de um fugitivo escapismo, realiza o homem crístico uma total transformação da sua natureza.
Quando falamos na necessidade de contacto entre o fermento e a massa de farinha, não nos referimos a um contacto material ou social. Por via de regra, o contacto externo é inversamente proporcional ao contacto interno; um homem social e sociável é, geralmente, incapaz de carregar devidamente a sua bateria espiritual; enquanto ele não cortar os fios-terra da sua permanente dispersividade, não acumulará energia espiritual e não beneficiará os homens. Somente um homem solitário em Deus pode ser proveitosamente solidário com os homens.
Daí, a imperiosa necessidade de profunda e diuturna meditação e de prolongado retiro espiritual.
É ilusão de muitos profanos pensar que um místico, vivendo em longínqua e ignota solidão, não tenha contacto real com a humanidade. As invisíveis auras espirituais de um verdadeiro místico ou homem auto-realizado, mesmo que ninguém saiba de sua existência, atuam poderosamente sobre outros homens, suposto que estes sejam receptíveis para esse recebimento de fluidos espirituais. E esses fluidos invisíveis atuam a qualquer distância. O contacto real não é necessariamente material nem social. Aliás, a nossa própria ciência já não identifica o real com o material; muitas vezes, o real é totalmente imaterial. Uma vibração aérea produzida por um agente material, como a voz humana, morre a pouca distancia, ao passo que uma vibração eletrônica, totalmente imperceptível, atravessa espaços imensos, vai até à lua e além.
Basta que um homem eleve à mais alta voltagem o fermento da sua espiritualidade – e beneficiará a todos os beneficiáveis. Um receptor de rádio não tem necessidade de saber onde se acha a estação emissora; esta lança as suas ondas eletrônicas em todas as direções, e qualquer receptor devidamente afinado pela freqüência do emissor receberá a irradiação.
É importante que haja estações de alta voltagem espiritual na humanidade – e todos os homens devidamente afinados serão beneficiados por esses emissores místicos, embora totalmente desconhecidos. Neste sentido escreveu Mahatma Gandhi: “Quando um único homem chega à plenitude do amor, neutraliza o ódio de muitos milhões”.
No mundo da metafísica e da mística vale a mesma Lei que a ciência conhece no mundo da física. Nenhuma energia se perde – todas as energias se transformam.

REMENDO NOVO EM ROUPA VELHA - VINHO NOVO EM ODRES VELHOS (Mt 9, 16 ss.)

O HOMEM DEVE AGIR POR CONVICÇÃO INTERNA, E NÃO APENAS POR CONVENÇÕES EXTERNAS

Certo dia, os zeladores da lei mosaica incriminaram Jesus e seus discípulos pelo fato de não jejuarem em dia prescrito pelas usanças da Sinagoga. E o Mestre lhes replicou por meio duma parábola corriqueiramente genial, dizendo:
“Ninguém põe remendo novo em roupa velha, porque o remendo de pano novo, contraindo-se, arrancaria parte da roupa velha, e ficaria pior o rasgão”.
Esta parábola, como a do fermento, é, certamente, uma reminiscência da modesta casinha de Nazaré, onde Jesus passou a sua juventude; a referência ao remendo novo em roupa velha faz lembrar a cestinha de costuras de Maria, quando remendava a roupa de trabalho de José. Ela não usava um pedaço de tecido cru, ainda não lavado, para consertar um rasgão em roupa velha, já poída pelo uso, porque o pano novo encolheria depois, alargando o rasgão da roupa velha. Para consertar roupa velha convém usar pano velho.
A mensagem do Nazareno é algo como veste nova, ao passo que as tradições da Sinagoga, que mandam jejuar em tal e tal dia do calendário vigente, são roupa velha; ele e seus discípulos jejuarão, certamente, não por motivos externos de tradições humanas, mas por algum impulso interno.
E, para reforçar esta mesma idéia,Jesus acrescenta outra comparação, que lembra o bazar de algum negociante de vinhos, num dos becos da cidadezinha de Nazaré:
“Ninguém deita vinho novo em odres velhos, porque o vinho novo (fermentando) rompe os odres velhos, e perdem-se tanto os odres como o vinho; vinho novo se deita em odres novos”.
O vinho novo da mensagem do Cristo não cabe nos odres velhos das usanças da Sinagoga, mas deve crear seus veículos próprios.
Um homem genial pode recorrer a comparações triviais, sem medo de amesquinhar sua genialidade – ao passo que um homem de talento medíocre deve evitar meticulosamente comparações vulgares, a fim de não se desacreditar.
Até hoje, é costume no Oriente Médio guardar e transportar vinho e outros líquidos em odres feitos de pele de animal.
Com estas duas comparações responde Jesus espirituosamente à incriminação dos adeptos da lei mosaica escandalizados com a não-observância do jejum ritual em dias prescritos pelo calendário da Sinagoga. Com isto põe ele o espírito da lei acima da letra da lei; Jesus não é contra a prática do jejum, mas faz ver que o verdadeiro motivo da abstinência não reside em alguma convenção externa, mas deve nascer da convicção interna. Os seus discípulos também jejuarão “quando lhes for tirado o Esposo”, quando se sentirem espiritualmente desolados, sem a consciência da presença do Cristo interno; então, para reaverem a consciência da plenitude espiritual, recorrerão ao jejum, mas não por estar prescrito, preto sobre branco, em algum pedaço de papel.
Estas palavras do Mestre nos põem em face da momentosa pergunta: Que relação existe entre a vacuidade do estômago e a plenitude do espírito?
O cristianismo dos nossos dias revela, geralmente, estranha incompreensão em face do jejum. Uns consideram essa prática como relíquia obsoleta de superstição medieval; outros vêem no jejum uma tentativa de comover Deus para nos perdoar os pecados em face dessa mortificação.
Entretanto, em todos os tempos e países, dentro e fora do cristianismo, foi praticado o jejum, não só por motivos materiais e terapêuticos, mas, sobretudo, por razões de caráter espiritual.
Jesus afirma que certa espécie de espíritos maus só se expulsa à força de jejum e oração. Ele mesmo jejuou durante 40 dias no deserto.
No cristianismo dos primeiros séculos era praticado assiduamente o jejum com oração. Antes de mandarem aos países pagãos os primeiros missionários o Barnabé e Saulo, referem os “Atos dos Apóstolos”, estabeleceram os chefes espirituais um período de jejum e oração – e o Espírito Santo lhes revelou a quem deviam mandar.
Médicos e terapeutas modernos recomendam o jejum controlado para fins de saúde. Os próprios animais, quando doentes, praticam jejum e abstinência para se curarem.
Entretanto a questão precípua para nós é saber qual a relação secreta que vigora entre jejum e espiritualidade. Que é que a vacuidade estomacal tem que ver com a plenitude espiritual?
Um dos campeões do jejum no nosso século foi Mahatma Gandhi. Quando esse chefe religioso e político da Índia realizava longos períodos de jejum, diziam certos ignorantes eruditos da nossa imprensa que Gandhi ameaçava suicidar-se, caso os ingleses invasores e os hindus rebeldes não obedecessem às suas ordens – este absurdo se atribuía a um homem da mais intransigência ahimsa (não-violência), que nem sequer admitia a matança de um animal. Gandhi, graças à sua profunda intuição conhecia outras bases para o seu jejum, como fiz ver no meu livro “Mahatma Gandhi”.
Tentemos descobrir a secreta relação entre jejum e espiritualidade.
As calorias extraídas dos alimentos ingeridos e assimilados podem ser submetidas a uma elaboração e potencialização ulterior e utilizadas para fins superiores, suposto que sejam cumpridas duas condições:
1 – a suspensão de novas calorias provindas da digestão (jejum);
2 – a sujeição das calorias antigas ao impacto de um poder superior (orações).
Todos os Mestres recomendam “jejum com oração”, porque sabem que não é o simples fato físico do jejum que resolve o problema, mas sim a abstenção de alimentos mais o impacto do espírito, que se chama oração ou meditação. Jesus passou 40 dias no deserto em “oração e jejum”.
Segundo a nossa física, nenhuma energia se perde, mas todas as energias são constantes e se transformam umas em outras: “Nada se crea, nada se aniquila, tudo se transforma” (Lavoisier).
E por que não aplicaríamos à metafísica esta lei física? Porque não valeria no mundo supra-material essa lei da constância das energias materiais?
Abster-se voluntariamente da ingestão de alimentos exige grande voltagem espiritual. O homem material obedece tiranicamente às exigências estomacais; para se opor a essa tirania material pela soberania espiritual, requer-se uma intensificação desta soberania espiritual, que reside no livre arbítrio. Necessidade e liberdade estão em pólos diametralmente opostos. A liberdade cresce na razão direta que a necessidade decresce. O espírito pode impor-se à matéria; pode reduzir a 50% os 100% das tiranias do corpo; e os 50% de redução material podem ser utilizados para fins espirituais.
Quando as calorias, já existentes no corpo, são submetidas a um impacto espiritual (oração, meditação), essas calorias passam por uma progressiva intensificação e sublimação; a quantidade se transforma em qualidade; a amperagem se dinamiza em voltagem. O nosso espírito tem um poder creador; espiritualiza o material.
“Jejum com oração” é um processo rigorosamente científico, ultracientífico; é a lei da constância e transformação das energias. Em última análise as leis da física são as leis da metafísica, apenas com a diferença de que estas são aplicadas num nível superior, numa nova dimensão.
O livre arbítrio é um poder creador e transformador.
Jesus e todos os Mestres espirituais conheciam e usavam esse poder, que deve nascer de dentro do centro espiritual do homem.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

CASA SOBRE ROCHA - CASA SOBRE AREIA (Mt 7,24 ss.)

A SUPREMA SAPIÊNCIA DO HOMEM NÃO ESTÀ EM OUVIR APENAS A VERDADE, MAS EM REALIZÁ-LÁ NA SUA VIDA

Depois de proferir o grandioso manifesto espiritual chamado Sermão do Monte, concluiu o Mestre com a seguinte parábola: “Todo aquele que ouve estas minhas palavras e as realiza, assemelha-se a um homem sábio que edificou sua casa sobre rocha. Desabaram aguaceiros, transbordaram os rios, sopraram os vendavais e deram de rijo contra esta casa – mas ela não caiu, porque estava construída sobre rocha. E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as realiza, parece-se com um homem insensato que edificou sua casa sobre areia. Desabaram aguaceiros, transbordaram os rios, sopraram os vendavais, dando de rijo contra esta casa – e ela caiu, e foi grande a sua queda”.
Em resumo: A alma e quintessência de toda sabedoria e felicidade da vida consiste em “realizar” as grandes verdades, e não somente em “ouvi-las”.
Quem apenas ouve, mas não realiza o que ouviu, é um “homem insensato”; quem ouve e realiza é um “homem sábio”.
Quer dizer, a diferença fundamental entre insensatez e sabedoria está em ouvir sem realizar, e por outro lado, em realizar o que se ouviu.
Pergunta-se o que quer dizer “realizar”. Filologicamente falando, realizar quer dizer tornar real o que não era real. A palavra grega que está no Evangelho para indicar esse realizar é o verbo poiéo, que significa “crear”. É também o radical de poesia, poeta, poema. É ainda a mesma palavra que o livro do Gênesis usa quando descreve a creação do mundo (em hebraico: barah), que traduzimos por fazer ou crear (não criar)! O substantivo derivado do verbo poiéo é poiema, e o processo de crear é poiesis; o factor ou realizador desse poiema é o poetés (poeta).
Não se trata, portanto, de transformar algo já existente, dando-lhe apenas uma nova forma; não é pôr “remendo novo em roupa velha”; mas trata-se de um poder creador que realiza algo que antes não era REAL, senão apenas REALIZÁVEL.
O livre arbítrio é uma força creadora; graças a essa creatividade, pode o homem realizar em si o que antes não existia. A ilustração clássica para esta creatividade, para esta poiesis, ou para este poiema, é a parábola dos talentos, onde os dois primeiros servos – os “servos bons e fiéis” – realizaram o dobro do que haviam recebido do seu Senhor; atualizaram a sua potencialidade; realizaram o “pouco” da sua creaturidade no “muito” da sua creatividade – porque foram fiéis no “pouco” da potencialidade foram constituídos sobre o “muito” da atualidade e entraram no gozo de seu Senhor.
Esses servos bons e fiéis, poetas creadores, realizaram o poema cósmico da sua auto-realização pelo poder da creatividade do seu livre arbítrio.
Voltando ao nosso ponto de partida: Jesus faz consistir a suprema sabedoria do homem no fato de ele realizar, pela creatividade do seu livre arbítrio, aquilo que ouviu e compreendeu como sendo a Verdade. O homem auto-realizado é pois, um poeta, um creador, e sua realização é um poema, uma “factura” ou um feito creador.
Como se vê, Jesus não entende por fazer ou realizar, em primeiro lugar, a produção de algo fora do homem, no mundo externo e visível dos objetos circunjacentes; ele se refere, em primeiro lugar, à creação do “alguém” interno, do Eu espiritual, invisível, à realização do sujeito pela conscientização: “Eu e o Pai somos um; as obras que eu faço é o Pai em mim que as faz”.
O homem, que, deste modo, se realiza é um místico dinâmico, um gênio. Um escritor moderno diz que a tarefa principal que o homem tem de realizar aqui na terra é “dar à luz a si mesmo”.
A auto-realização é o que a palavra diz: uma auto-creação, e o homem auto-realizado é um poema. Assim como Deus creou o poema do cosmos sideral, assim pode o homem crear o poema do seu cosmos hominal. O FIAT LUX é creador, não somente no mundo objetivo, mas também no mundo subjetivo: não somente transforma o caos em cosmos, mas também o ego em Eu, o homem ego-cêntrico no homem teo-cêntrico.
Isto é o poiéo creador do homem que sabe e saboreia intimamente a sapiência do Sermão do Monte, realizando-a creativamente em sua Cristo-vivência: “Já não sou eu que vivo, é o Cristo que vive em mim”.
Esse homem edificou a casa da sua vida sobre a rocha viva da Verdade; a Verdade plenamente vivida gera a Liberdade, e da Liberdade nasce a Felicidade.
De maneira que essas palavras com que o Mestre encerra a sua proclamação do Reino de Deus no homem representam uma síntese de todo o Evangelho.
O homem profano, o homem externo, dá a máxima importância ao seu agir periférico, aos seus atos intermitentes, descuidando-se do seu Ser central, da sua atitude permanente. Edifica a casa da sua vida sobre a movediça areia de ruidosas atividades materiais, sociais e intelectuais; a sua vida se parece em tudo com uma enorme quantidade de grãozinhos de areia, justapostos, desconexos, sem nenhuma coesão interna; toda a sua vida é uma vasta heterogeneidade quantitativa sem nenhuma homogeneidade qualitativa.
A vida do homem cristificado, porém, é como rocha viva, como um bloco monolítico de solidez e coesão homogênea; há nele uma logicidade unitária e rectilínea; há um ideal supremo em sua vida para o qual convergem todas as linhas da sua atividade.
O profano panteão dos ídolos do seu velho ego humano foi transformado no santuário sacral do seu novo Eu divino. A sua consciência mística transbordou em vivência ética. A profunda vertical do seu Ser se espraiou na vasta horizontal de um Agir, e todos os atos vários do seu ego obedecem à atitude única do seu Eu.
O homem que não somente ouviu, mas saboreou e realizou creativamente as palavras da verdade entrou numa nova dimensão de consciência e de vivência – ou melhor, saiu de todas as dimensões e durações de tempo e espaço e entrou na zero-dimensão e na zero-duração do Infinito e do Eterno. Não pôs “remendo novo em roupa velha”, mas fez-se “nova creatura em Cristo”.
E, graças à nova consciência do seu Eu crístico, também se transfiguraram todas as suas vivências no setor do seu ego humano, individual, doméstico, social.
Tal é o poema, a epopéia cósmica do homem que não só ouviu as palavras de Jesus, mas realizou em si o espírito do Cristo.

O JOIO NO MEIO DO TRIGO (Mt 13,24 ss.)

TODO HOMEM TEM O DIREITO A REALIZAR-SE ATÉ O FIM DO SEU CICLO EVOLUTIVO

Como outras parábolas, é também esta flagrante paradoxal,se focalizarmos apenas o seu símbolo material. Imagine-se um fazendeiro que semeasse trigo, ou outra semente qualquer, em seu campo, e proibisse os trabalhadores de arrancarem o “mato”, as ervas daninhas que aparecessem no meio da plantação!
Mas, como o principal de uma parábola não é o símbolo material, e sim o simbolizado espiritual, a proibição de arrancar o joio do meio do trigo contém uma filosofia cósmica de grande profundeza e sublimidade.
O campo é o mundo da humanidade.
O trigo são os bons.
O joio são os maus.
Tanto estes como aqueles são o que são, graças ao uso ou abuso do seu livre arbítrio. Deus não fez nenhum homem moralmente bom nem mau; Deus dá a cada um a possibilidade de ele se fazer bom ou mau. Todo homem pode fazer-se melhor ou pior do que Deus o fez. O homem sai das mãos de Deus em estado “neutro”, apenas potencialmente bom e potencialmente mau. Um ser dotado de livre-arbítrio não pode ser creado atualmente bom nem atualmente mau, que seria a negação do livre arbítrio.
Esta neutralidade contém em si a semente, ou potencialidade, para uma creatividade boa ou má; a brotação, ou atualização, dessa dupla potencialidade corre por conta do homem. Onde há livre arbítrio não há automatismo compulsório.
No mundo infra-hominal não existe essa bipolaridade potencial; o mundo mineral, vegetal, animal, se acha num permanente e imutável automatismo; nenhum ser infra-hominal pode tornar-se moralmente bom nem moralmente mau. O livre arbítrio põe o homem numa bifurcação positiva-negativa; o livre arbítrio é o maior privilégio do homem – e também o seu maior perigo. O livre arbítrio entrega ao homem as chaves do céu e do inferno, da luz e das trevas, do ser-bom e do ser-mau.
Deus respeita incondicionalmente o livre arbítrio do homem, tanto para o bem como para o mal. Deus não obriga ninguém a ser bom, e não impede ninguém de ser mau. Jesus não impossibilitou a Judas Iscariotes ser traidor e suicida – nem forçou Madalena a se converter.
Pelo livre arbítrio possui o homem uma creatividade, positiva ou negativa. E é vontade de Deus que o homem desenvolva até o fim este seu poder creador; que tenha plena e permanente liberdade de evolução rumo às alturas, ou então rumo ao abismo.
Ora, se o próprio Deus não impede o homem em sua evolução positiva ou negativa nem extermina nenhum mau por ser mau, como poderia o homem fazer o que Deus não faz? Verdade é que o próprio homem livremente mau pode auto-exterminar-se, se não se tornar bom antes do termo final do seu ciclo evolutivo; mas esse extermínio não deve vir de fora dele.
Tamanha é a insipiência de certos homens que tentam arrancar o joio do meio do trigo para que morram todos os maus e sobrevivam tão-somente os bons – os bons matadores! Segundo essa filosofia, devia a terra ser habitáculo exclusivo dos bons matadores, livre e limpa dos maus matados.
Se é grande a boa vontade desses “bons”, nula é a sua sabedoria.
O Evangelho do Cristo, porém, é a apoteose da suprema sabedoria cósmica; quer um ser-bom por expontânea liberdade, e não um ser-bom por compulsória necessidade. O homem deve ser intrinsecamente bom em virtude de um querer próprio, e não apenas extrinsecamente bom por um querer alheio. O seu ser-bom deve ser fruto dum voluntário querer, e não de um compulsório dever. O homem deve ter todas as possibilidades para ser mau – e, apesar disto, ser bom, livre, liberrimamente bom.
Mas, dirá alguém, neste caso, o mau tem os mesmos direitos que o bom, e, se há igualdade de direitos de parte a parte, que vantagem há em ser bom? Não equivale isto a matar todo o estímulo para ser bom? Não é isto a marte de toda a pedagogia e educação espiritual?
Esta falsa filosofia, através de séculos e milênios, tem tentado exterminar os maus e fazer sobreviver somente os bons; Cruzadas e Inquisições, guerras de religião, ódios sectários, violências de toda a espécie margeiam o caminho do nosso cristianismo de quase 2000 anos, isento da verdadeira sabedoria do Cristo.
Não é verdade que o destino dos bons e dos maus seja o mesmo, embora todos tenham os mesmos direitos de realizar livremente o seu destino.
O destino de uns e outros é diametralmente oposto: vida eterna – ou morte eterna; integração – ou desintegração; realização – ou desrealização.
Os bons se auto-realizam – os maus se auto-desrealizam. Ninguém tem o direito de impedir que alguém se realize pelo bem – ou se desrealize pelo mal.
Mas, perguntará alguém, para que serve então a nossa pedagogia? Se eu não posso fazer o bem a ninguém, para que esse desperdício de esforços educativos e moralizadores?
Verdade é que ninguém pode obrigar alguém a ser bom – mas o educador pode facilitar o seu educando tornar-se bom. O educador não pode condicioná-lo a ser bom, pode mostrar-lhe o caminho, pode remover obstáculos que atravancam o caminho e assim facilitar a passagem a seu educando.
Mas nunca, em hipótese alguma, pode o educador, por melhor que seja, ter a certeza de que os seus esforços convertem o educando. Perante o livre arbítrio alheio, nada é previsível; pode o melhor dos educadores ter zero resultado com o seu educando – assim como Jesus teve zero resultado com Judas.
Em face do livre arbítrio alheio, tudo é possível, nada é impossível, nada é previsível. O livre arbítrio não é uma cadeia de elos onde o elo precedente obrigue o elo subseqüente a mover-se; o livre arbítrio é um elo isolado e autônomo, independente de qualquer causador externo; não é alo-causado – é auto-causante. A única coisa certa que o educador pode e deve fazer é auto-educar a sua própria substancia a tal ponto que nenhuma circunstancia alheia o torne vaidoso, quando o resultado for positivo, nem o torne frustrado, quando o resultado for negativo.
Se um educador, auto-educado, atingir essa libertação total de si mesmo, essa total desescravização de toda e qualquer vaidade complacente em face de sucessos externos, e essa total serenidade em face de insucessos externos – então é ele um poderoso fator para crear auras propícias que facilitem outros homens a serem bons. Um homem assim pleniliberto de qualquer tirania do ego, não derrotado pela vaidade do sucesso, nem pela tristeza do insucesso – esse homem é um gigantesco acumulador de energia espiritual, quer o saiba quer não o saiba. E, como nenhuma energia se perde, e todas as energias se transformam, essas energias espirituais por ele acumuladas irradiam beneficamente e podem ser captadas por outros seres livres, conhecidos ou desconhecidos, próximos ou distantes, presentes ou futuros, no planeta terra ou em alguma longínqua galáxia cósmica – e então esse homem é um grande benfeitor da humanidade telúrica ou de outras humanidades. Esse homem atua por indução, como diríamos em física, atua por transferência de energias invisíveis.
Neste sentido dizia Mahatma Gandhi: “Quando um único homem atingir a plenitude do amor, neutraliza o ódio de muitos milhões”.
“O único modo de fazer bem aos outros é ser bom” (Ramana Maharishi).
A parábola não diz que Deus extermina o joio, os maus, mas estes se exterminam a si mesmos pela não integração na Lei cósmica. Onde impera a onipotência do livre-arbítrio, é possível tanto a integração do indivíduo no Universal como também a sua desintegração, que no Evangelho se chama “morte eterna”. É um dos mais funestos erros tradicionais da nossa teologia afirmar que a alma humana é imortal, quando ela é apenas imortalizável. Nenhuma creatura é imortal; imortal é somente o Creador; as creaturas ou são mortais ou imortalizáveis.
Os que ainda pensam em termos de um Deus pessoal, individual, não se conformarão com esta verdade. Mas o Evangelho do Cristo, como também as grandes filosofias da humanidade, sabem que Deus não é uma entidade individual; Deus é a Lei cósmica universal. Os que voluntariamente se integram nessa lei se imortalizam – os que voluntariamente não se integram nela, se desintegram, ou se auto-exterminam.