sexta-feira, 26 de setembro de 2008

O RICO AVARENTO E O POBRE LÁZARO (Lc 16,19 ss.)

ENQUANTO O HOMEM NÃO SE CONVERTE DA SUA MALDADE, CONTINUAM OS MALES, COM OU SEM CORPO MATERIAL

Por demais conhecida é esta parábola. Um ricaço vivia luxuosamente no seu palacete, vestindo-se com os tecidos mais finos e banqueteando-se esplendidamente todos os dias.
À porta da sua residência jazia um pobre, coberto de chagas e meio-morto de fome. Ansiava por catar as migalhas que caíam da mesa do ricaço, mas ninguém lhas dava, e ele não podia mover-se para apanhá-las. Até os cães vinham lamber-lhe as feridas.
Morreu o pobre Lázaro – morreu de fome.
Algum tempo depois, morreu também o rico – morreu, provavelmente, de indigestão, porque quem se banqueteia esplendidamente todos os dias, não pode ter vida longa.
O texto menciona que o rico “foi sepultado”, certamente com música e discursos. Lázaro, provavelmente, não foi sepultado, mas jogado ao monturo. A Vulgata Latina diz que o ricaço foi “sepultado no inferno”; mas o texto original grego põe ponto depois da palavra “sepultado”; depois, em nova frase, diz: “No inferno levantou os olhos”; não os olhos físicos, que estavam enterrados, mas os olhos da consciência. Isto faz supor que o corpo físico seja uma espécie de tampão opaco, que não nos deixa enxergar nitidamente o que realmente somos. Parece que, depois da remoção desse tampão opaco, o homem enxerga melhor a sua realidade espiritual.
Segue-se então o estranho diálogo entre o rico no inferno e Abraão, representante do mundo espiritual, nas alturas. O rico, do meio dos seus sofrimentos, pede a Abraão que mande Lázaro refrigerar-lhe a língua com uma gotinha d’água para aliviar um pouco os terríveis sofrimentos nas chamas do inferno. Abraão, porém, se nega a atender ao pedido, acrescentando que há um abismo entre os do inferno e os das alturas, de maneira que não há possibilidade de transição de cá para lá, nem de lá para cá.
Destas últimas palavras concluem muitos leitores a impossibilidade duma conversão após a morte; que sem fim são os sofrimentos dos condenados ao inferno, como sem fim são os gozos dos habitantes celestiais.
Entretanto, convém notar que o texto não menciona com uma só palavra algo como “conversão” do sofredor; o que o rico pode é unicamente alívio das penas; não se mostra arrependido da sua vida pecaminosa; pensa apenas em como aliviar o seu mal, sem se converter da sua maldade. A sua mentalidade pecadora continua a mesma que foi durante a vida terrestre. Continua a ser pecador, um pecador sofredor, depois de ter sido um pecador gozador. O que ele pede não é possível, em face da inexorável justiça e justeza das leis cósmicas: enquanto durar a culpa, perdura a pena; enquanto existir a maldade, persiste o mal.
É este o intransponível “abismo” mencionado por Abraão.
O rico condenado por sua própria maldade não pede reencarnação para se converter, numa nova vivência terrestre; pede apenas que Abraão mande Lázaro reencarnar, ou ressuscitar, a fim de prevenir seus cinco irmãos vivos, para que não venham sofrer o que ele está sofrendo. Não pede que seus irmãos se convertam pela pregação de Lázaro redivivo; pede apenas que não venham a sofrer o mesmo mal, embora não renunciem às suas maldades. Abraão porém, se nega a atender ao pedido, porque sabe que não se converteriam – e sem conversão da maldade não há abolição do mal.
Abraão faz ver que esses cinco pecadores em corpo material não estão com vontade de se converterem, nem que um defunto redivivo lhes falasse.
Este paralelismo com os cinco irmãos, farinha do mesmo saco, bem mostra que o pecador defunto continuava pecador impenitente no além, como os cinco impenitentes no aquém.
Essa pretensa dissociação entre culpa e pena, entre causa e efeito, entre maldade e mal, é absolutamente impossível em face das leis cósmicas.
E, por esta razão, há entre uns e outros um “grande abismo”, sem nenhuma possibilidade de transição de cá para lá, nem vice-versa. Esse abismo intransponível não é creado por Deus, mas é cavado pelo próprio homem. Deus não fez nenhum céu, nem fez um inferno para o homem. É o livre arbítrio humano que crea o céu e o inferno. Céu e inferno são estados da consciência creados pelo homem.
“O Reino dos Céus está dentro de vós” – e o reino do inferno também pode estar dentro do homem. A mentalidade dum defunto é a mesma depois da morte que foi durante a vida. O pecador impenitente continua a ser pecador após-morte, enquanto persistir na sua mentalidade pecadora.
Foi-se o invólucro material, mas persiste a impenitência mental. Nenhuma morte, nem muitas mortes, podem matar o mentalismo pecador, enquanto o livre arbítrio anti-espiritual se mantiver vivo.
“Do mundo dos fatos – escreve Einstein – não conduz nenhum caminho para o mundo dos valores”. O fato da morte material não destrói o valor negativo do materialismo mental. O pecador que, na matéria, foi pecador, não deixa de ser pecador fora da matéria. O materialista gozador se converte num materialista sofredor; continua a ser materialista pecador. E por isto há um abismo entre nós e vós, entre materialismo e espiritualismo.
E, se um materialista sem matéria continuar impenitente no seu materialismo, é bem possível que o poder do seu mentalismo materialista acabe por rematerializar o seu corpo – e recomeça o velho círculo vicioso: o materialista volta ao seu céu material por mais meio século – e assim por diante, 10 vezes, 50 vezes, 100 vezes, reencarnando, enquanto não se converter do seu mentalismo materialista.
Não é o sofrimento como tal, nem é a rematerialização como simples fato que leva o homem à espiritualidade, como bem prova o caso do materialista sofredor da parábola. O que redime o homem do seu materialismo, gozador ou sofredor, é uma nova vivência espiritual. Esta vivência, porém, não provèm de uma nova materialização, ou reencarnação; essa nova vivência nasce de uma total mudança em seu livre arbítrio. Valores não são causados por fatos; um único valor não vem de 100, nem de 1000 fatos. Somente um novo compreender, um novo querer, um novo viver é que pode redimir o homem das suas maldades, e, finalmente, também dos seus males.
A parábola do rico avarento e do pobre Lázaro encerra uma inteira metafísica de Filosofia Cósmica, que convém focalizar mais profundamente.
Há quem pense que o sofrimento seja fator de redenção. Nenhum sofrimento como tal redime o homem, mas é a atitude do homem em face do sofrimento que o pode redimir. O sofrimento pode levar o homem ao desespero e ao suicídio, como aconteceu com Judas Iscariotes, que sofreu, se arrependeu, mas não se converteu.
No meu livro “Porque Sofremos”, dividi os sofredores em três classes: a retaguarda dos revoltados, o exército dos conformados, e a vanguarda dos regenerados. Só este último grupo se aproveitou do sofrimento para sua purificação. O segundo grupo não melhorou nem piorou; o primeiro grupo piorou com o sofrimento.
O sofredor da parábola não se converteu com todos os seus sofrimentos, não porque não pudesse, mas porque não quis. E ele podia querer, pois o livre arbítrio persiste enquanto a alma existe; o livre arbítrio é atributo do espírito, e não da matéria. A alma sem corpo material pode converter-se, quando quiser, e pode também não converter-se.
Se, para a conversão, for necessário o sofrimento, não faltará oportunidade aos desencarnados para sofrer, porquanto a zona do sofrimento é precisamente o mundo astral. Pelo menos neste ponto têm razão as teologias em focalizarem o inferno e o purgatório no mundo astral. Nem na vida presente é, propriamente, o corpo material que sofre, mas sim o corpo astral do homem.
A idéia de que a alma sem corpo físico entre num estado de “congelamento”, ou “cristalização” imutável, é por demais absurda para ser tomada a sério.
A parábola fala do “abismo” entre os livremente convertidos e os livremente pecadores. E enquanto alguém for pecador não pode esperar libertação definitiva do sofrimento.
Aqui temos uma verdadeira apoteose das imutáveis leis cósmicas.
Aqui estamos diante do mistério do livre arbítrio.
O homem é o creador do seu céu – ou do seu inferno...