terça-feira, 30 de setembro de 2008

O AMIGO IMPORTUNO E O JUIZ INÍQUO (Lc 11, 5 ss.; Lc 18, 1 ss.)

É NECESSÁRIO PEDIR COM INSISTÊNCIA A FIM DE CREAR NA ALMA UM AMBIENTE DE RECEPTIVIDADE

Nestas duas parábolas geminadas insiste Jesus na mesma idéia: orai sempre e nunca deixeis de orar.
À primeira vista, parece estranho, e quase paradoxal, esta insistência no orar, pedir, buscar, bater.
“Pedi, e recebereis; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á... Tudo que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vô-lo dará... Orai, e nunca deixeis de orar”.
Na parábola do amigo importuno e do juiz iníquo, essa insistência chega às raias da impertinência. Imaginem! Um homem, altas horas da noite vai à casa de um amigo, bate ruidosamente à porta e lhe diz: “Amigo, empresta-me três pães, porque chegou de viagem um amigo meu, e eu não tenho o que lhe servir”. Mas o de dentro lhe responde, sem se levantar: “Deixa-me em paz! Já estou no quarto com meus filhos, e não posso levantar-me”. Mas o de fora, teimoso, continua a bater e a insistir no pedido. Finalmente, o de dentro se levanta e lhe dá o que o outro pede, não por ser seu amigo, mas para se ver livre da importunação e poder dormir.
E Jesus acrescenta que é assim que o homem deve pedir a Deus.
Na outra parábola, conta o Mestre a história de uma pobre viúva explorada por um ricaço prepotente. Ela vai ter com o juiz e insiste: “Faze-me justiça contra meu adversário”. O juiz, porém, que “não teme a Deus nem respeita homem algum”, não quer atendê-la.
Já que esta parábola tem caráter humorístico, vamos deter-nos um pouco neste aspecto: esse homem que, altas horas da noite, vêm pedir três pães para servir a um amigo, deve ter sido um yogue, um asceta, ou então um solteirão impenitente. Mora sozinho. Não tem em casa um bocado de pão. O outro pede logo três pães, por sinal que o viajante está esfaimado. O outro diz que está no seu quarto com seus filhos. Não fala em mulher. Possivelmente, segundo o costume de certos países, os meninos dormiam com o pai e as meninas dormiam com a mãe; e o quarto do marido ficava logo na entrada da casa, para a rua. Ou não existia esse móvel vergonhoso chamado cama de casal.
Na outra parábola, a viúva continua a insistir, a tal ponto que, por fim, o juiz resolve atendê-la, não por causa dela, mas, como diz pitorescamente o texto sacro, “para que, afinal de contas, ela não acabe por meter-me as mãos na cara”.
Muitos tradutores não têm coragem de traduzir ao pé da letra o que dizem tanto o texto grego do original como também a tradução latina e amenizam o tópico dizendo “para que não venha molestar-me”, como se não o estivesse molestando há tanto tempo.
Como no caso do amigo importuno, a insistência no pedir culmina numa situação hilariante.
Tanto o homem em plena noite como também o juiz atendem, finalmente, ao pedido, obrigados pela importunação dos pedintes.
Sendo que toda a parábola, como já foi dito, se compõe invariavelmente, de um símbolo material e de um simbolizado espiritual, é evidente que o motivo material e egoísta dos dois importunados não tem cabimento no simbolizado espiritual; Deus não pode sentir-se importunado por nossos pedidos, nem nos atende para se ver livre da nossa importunação. Essas comparações ilustram drasticamente a idéia central da parábola: o homem deve orar, pedir, buscar, bater tão impetuosamente como se incomodasse a Deus com as suas insistências, como se Deus fosse obrigado, quase forçado, a atendê-lo para se ver livre da suposta importunação do pedinte. Jesus sentiu a necessidade de exagerar hiperbolicamente a atitude do pedinte a fim de dar ênfase à absoluta necessidade do pedir, orar, buscar, bater.
Mas, agora perguntamos: porque essa necessidade de pedir, se Deus é onisciente, e sabe perfeitamente de que necessitamos, mesmo antes de lho pedirmos? Em outra ocasião, o próprio Mestre afirma explicitamente que “vosso Pai celeste sabe de que haveis mister, mesmo antes de lho pedirdes”.
E, apesar desta declaração categórica, continua Jesus a repetir que é necessário pedir sempre, e nunca deixar de pedir.
Essa atitude humana não pode ter por fim lembrar a Deus que necessitamos disto e daquilo, como se Deus pudesse esquecer-se de nós ou ignorar as nossas necessidades de cada dia. A finalidade do pedido ou da oração é, evidentemente, outra. A finalidade é crear em nós mesmos uma atitude tal que Deus nos possa atender, pois só “quando o discípulo está pronto o Mestre aparece”.
As eternas leis cósmicas ou divinas, funcionam com infalível precisão, com uma matemática absoluta, e não podem jamais deixar de funcionar. Mas elas só podem funcionar onde há um ambiente propício para seu funcionamento. Na natureza extra-hominal, essas leis funcionam automaticamente, porque o ambiente propício sempre existe, graças à mecanicidade das leis da natureza. O sol sempre nascerá no Oriente e se porá no Ocidente, sem adiantar ou atrasar um só segundo. A planta sempre florescerá e frutificará segundo as suas leis intrínsecas e infalíveis.
No mundo hominal, porém, podem existir ou não existir as circunstancias para o funcionamento ou não funcionamento das leis cósmicas. O homem pode possibilitar, em sua pessoa, o funcionamento das leis de Deus. Onde impera o livre arbítrio, nada é previsível. Deus quer dar ao homem os bens que em Deus estão, mas o homem pode obstruir o seu recipiente humano e não receber o dom do doador divino, e pode também abrir e alargar o seu recipiente ao ponto de receber em maior medida a dádiva divina. O recipiente humano, como se vê, é muito elástico, estreitável e alargável.
O pedir, orar, buscar, bater, têm por fim alargar cada vez mais o recipiente humano.
O velho adágio filosófico “o recebido está no recipiente segundo a capacidade do recipiente” ilustra bem esta verdade. Todo o finito recebe do Infinito aquilo que corresponde à medida maior ou menor da sua finitude. Se a capacidade do finito for igual a 10, o recipiente receberá 10; se for igual a 50, receberá 50; se for igual a 100, receberá 100. quem vai ao oceano com um copo, colherá um copo de água salgada; quem vai com um litro, colherá um litro; quem vai com um balde, colherá um balde – não por causa do oceano, mas por causa da capacidade do copo, do litro e do balde.
Para receber da Infinita Plenitude, deve o homem finito ampliar a sua finitude, que tem muitos graus, mas cuja potencialidade pode ser aumentada por seu livre arbítrio.
A ordem de orar, pedir, buscar, bater, nada tem que ver com Deus; tem que ver unicamente com o homem.
Suponhamos que alguém esteja, em pleno meio-dia, numa sala totalmente às escuras, de janelas fechadas. Para que entre luz solar, não é necessário dirigir-se ao sol, ou pedir que ele mande seus raios nesta direção; basta abrir uma janela na direção do sol, abri-la pouco para receber pouco sol, abri-la muito para receber muito sol.
Uma planta volta suas folhas ao sol para receber luz e calor e poder crescer, florescer e frutificar – mas o sol não é afetado por nada disso.
O livre arbítrio do homem é seu maior privilégio – e também o seu maior perigo. O uso ou falta de uso da sua liberdade torna o homem melhor ou pior. Pelo livre arbítrio é o homem melhor ou pior. Pelo livre arbítrio é o homem o seu próprio Deus – e também o seu anti-Deus, o creador do seu céu ou do seu inferno.
O destino cósmico depende de Deus somente – mas o destino humano depende do homem, não na zona independente do livre arbítrio, mas na zona da sua liberdade. As circunstâncias externas podem, sem dúvida, facilitar ou dificultar o exercício do livre arbítrio – mas nenhuma circunstância me pode obrigar a ser bom nem a ser mau.
Resumindo, podemos afirmar que estas duas parábolas, do amigo importuno e do juiz iníquo, são uma verdadeira apoteose do livre arbítrio humano.