segunda-feira, 29 de setembro de 2008

OS TALENTOS (Mt 25, 14-33; Lc 19, 11 ss.)

APOTEOSE DO PODER CREADOR DO LIVRE ARBÍTRIO

O Reino dos Céus é semelhante a um homem que, em vésperas de empreender longa viagem, chamou seus servos e lhes distribuiu o seu dinheiro para negociarem com ele em sua ausência.
Ao primeiro servo entregou 5 talentos. O talento era uma moeda grega que equivalia a cerca de 10.000 cruzeiros nossos; quer dizer, o primeiro servo recebeu cerca de 50.000 cruzeiros para negociar.
Ao segundo servo deu 2 talentos, cerca de 20.000 cruzeiros.
Ao terceiro servo deu 1 talento, ou 10.000 cruzeiros nossos.
Deu-lhes ordem que negociassem com esses cabedais até que ele voltasse da viagem.
E partiu.
Depois de muito tempo, regressou da viagem e chamou à conta os três servos. O primeiro se apresentou prontamente e disse: “Os teus cinco talentos renderam cinco; eis aqui dez talentos”. Respondeu-lhe o senhor: “Muito bem, servo bom e fiel, porque foste fiel no pouco, constituir-te-ei sobre o muito; entra no gozo do teu senhor”.
Aparece o servo que recebera 2 talentos e apresenta 4, repetindo quase as mesmas palavras, e ouviu do seu senhor a mesma resposta.
Finalmente aparece o terceiro servo, que recebera apenas um talento e faz um longo discurso sem entregar nada de seu, mas devolvendo apenas o talento recebido. O discurso fútil dele é o seguinte: “Bem te conheço, senhor; tu és um senhor severo, colhes o que não semeaste e ajuntas o que não espalhaste; por isso tive medo de ti e enterrei o teu talento – aqui o tens”.
Este servo recebeu de Deus a sua creaturidade, como os outros, enterrou-a, e devolveu-a tal qual, sem lhe acrescentar nada da sua creatividade humana; devolveu o que recebera de Deus, sem nada lhe acrescentar de seu próprio. E é terrível a resposta do senhor: “Servo mau e preguiçoso! Com tuas próprias palavras eu te condeno; se tu sabias que eu colho o que não semeei e ajunto o que não espalhei, porque não fizeste frutificar o talento que te dei, para que eu o recebesse com juros? Tirai-lhe o talento que tem, porque quem tem receberá mais e terá em abundância; mas quem não tem perderá até aquilo que tem”.
Assim diz literalmente o texto grego. Mas o tradutor da Vulgata Latina diz: “Quem não tem perderá aquilo que parece ter” (quod videtur habere). Evidentemente, o tradutor achou por demais absurda a frase “quem não tem perderá até aquilo que tem”, e suavizou o texto dizendo “que parece ter”, que é o sentido oculto, embora não seja o texto explícito. Esta modificação foi feita no texto de Mateus; mas no texto paralelo de Lucas o tradutor reproduziu exatamente o texto grego: “Quem não tem perderá até aquilo que tem”. Ninguém possui realmente aquilo que recebeu, mas somente aquilo que ele mesmo creou.
Aqui poderíamos citar, como equivalente, as conhecidas palavras de Goethe: “Was du ererbt Von deinen Vaetern, erwirb es, um es zu bezitzen” (o que herdaste de teus pais adquire-o para o possuíres). De fato, não possuímos realmente o que apenas herdamos ou recebemos de outrem; só possuímos realmente aquilo que adquirimos ou conquistamos com o poder creativo do nosso livre arbítrio. A nossa creaturidade nos foi dada por Deus, e por isso não é realmente nossa; somente é nosso, profundamente nosso, aquilo que creamos com o poder do nosso livre arbítrio, com a nossa genuína e autêntica creatividade humana.
Os dois primeiros servos não devolveram ao senhor apenas a creaturidade, que dele haviam recebido; mas ofereceram-lhe algo genuinamente deles, o produto da sua própria creatividade. E é por isto que são chamados “servos bons e fiéis”, e entram no gozo de seu senhor. Estes dois servos se auto-realizaram, como diríamos em linguagem moderna. Os segundos cinco e dois talentos não são do senhor, mas são desses servos auto-realizados.
O que os teólogos chamam “salvação” tem de ser transformado hoje em dia em “auto-realização”; não existe alo-redenção, só existe auto-redenção, auto-realização, que é o despertamento das potencialidades latentes na alma humana até a sua total atualização.
O terceiro servo, que devolveu apenas a sua creaturidade, sem um vestígio de creatividade, é chamado “servo mau e preguiçoso”, e, pior de tudo, perdeu aquilo que tinha recebido, mas não era seu, a sua creaturidade. Perdeu a sua potencialidade creativa, porque não a atualizou em Realidade creadora. Perdeu o seu livre arbítrio, a sua natureza humana, que, sem livre arbítrio, deixa de ser humana. Degradou-se a um infra-homem, deixou de ser homem. Sucumbiu à “morte eterna” da sua individualidade humana. Quem tem creaturidade humana, mas não a transforma em creatividade, pelo poder do seu livre arbítrio, esse perderá até a sua creaturidade humana. As leis eternas da Constituição Cósmica (ou Divina) não dão potencialidade a nenhum ser para não serem transformadas em atualidades, durante o ciclo total da existência da creatura, ciclo evolutivo que, certamente, não compreende apenas os poucos decênios da vida terrestre. Se o homem, durante o ciclo total da sua existência, terrestre e extraterrestre, não se realizar, ele se des-realiza; se não se integrar no infinito, ele se desintegra, perde a sua individualidade.
Os dois primeiros servos foram “fiéis no pouco”, nas suas potencialidades creaturais, e por isto receberam “o muito”, o resultado das suas realidades creadoras.
Neste sentido, escreveu um filósofo europeu de nossos dias: “Deus creou o homem o menos possível, para que o homem se possa crear o mais possível”.
Esta parábola é uma apoteose da onipotência do livre arbítrio humano. O homem, quando sai das mãos de Deus, não é realizado, mas apenas realizável. Está aqui na terra, ou em outros mundos, para realizar plenamente a sua natureza realizável. Se se realizar, é servo bom e fiel e entra no gozo do seu senhor, integra-se na Divindade pela imortalização individual. Se não realizar a sua natureza realizável, neste ou em outros mundos, acaba por se desrealizar ou aniquilar.
A parábola dos talentos pode ser considerada como sendo a quintessência da metafísica cósmica do Evangelho do Cristo. Há quase 2000 anos que a mensagem do Cristo é mencionada pelas igrejas como se fosse uma teologia, quando, na realidade, é a maior Filosofia Univérsica que já apareceu sobre a face da terra.
Há quem negue a possibilidade de o homem sucumbir à morte eterna, a uma extinção definitiva, porque, dizem, a alma é imortal. Entretanto através de todo o Evangelho consta essa possibilidade. A alma não é imortal, mas é imortalizável.
A imortalidade potencial é um presente de berço, mas a imortalidade atual é uma conquista da consciência. A alma imortalizável se imortaliza pelo poder creador do livre arbítrio.
É esta a grandiosa mensagem da parábola dos talentos.