terça-feira, 14 de outubro de 2008

4 – BEM-AVENTURADOS OS QUE TÊM FOME E SEDE DA JUSTIÇA, PORQUE ELES SERÃO SACIADOS

Felizes os que têm fome e sede...
Pode-se lá imaginar maior desafio do que este?
No mundo dos profanos vale exatamente o contrário: felizes os fartos porque nunca sofreram fome nem sede.
E, de tão fartos, esses pseudo-felizes acabam quase sempre tão infelizes, que toda a sua fartura termina em insuportável fastio.
Esses fartos estão quase sempre fartos da sua vida.
Consta pela estatística internacional que o maior número de suicídios ocorre entre os ricos e abastados, e ocorre invariavelmente em tempo de farturas e bem-estar. Na Europa, após a última guerra mundial, no período de carestia, houve muito menos suicídios do que em longos períodos de paz e fartura. O homem profano acha tão insuportável uma vida 100% satisfeita e farta que tenta evadir-se deste insuportável tédio da sua vida terrestre.
Se muitos morrem de fome, muitíssimos se suicidam de fastio.
No entanto, com a fome e sede de que fala o Mestre acontece precisamente o contrário: ter fome e sede da justiça, da verdade, intensifica a felicidade e crea uma experiência de vitalidade potencializada.
Nenhuma prosperidade física é por muito tempo suportável sem uma base metafísica.
Quando um homem começa a fome e sede do manjar espiritual e das águas vivas do espírito, principia ele a viver plenamente, e nunca mais desejaria viver sem essa bendita fome e essa deliciosa sede. Tem pena dos pobres profanos que nunca sentiram essa inefável vivência metafísica e mística.
Os ego-satisfeitos são uns infelizes, mas não o sabem.
Os egos-insatisfeitos são os felizes, e têm plena consciência da sua felicidade.
Dinheiro, sexo e divertimento – essa trindade de objetos exteriores não permite ao homem profano ter sede de algo além dessa infeliz satisfação. E quando algum profano é ameaçado de perder a sua infeliz satisfação; quando é incapaz de se deliciar ulteriormente com dinheiro, sexo e divertimentos – que faz ele? Tenta narcotizar com derivativos e dispersivos a sua vacuidade, tenta anestesiar temporariamente as suas dores, não para ser feliz, mas para sentir menos a sua infelicidade, por algum tempo. Ele conhece uma farmacopéia de expedientes, comprimidos, injeções e analgésicos, que lhe suavisam as dores do ego doente, embora nenhum desses remédios lhe possam curar os males; contenta-se com paliativos e camuflagens menos dolorosos do que a operação cirúrgica recomendada pelos mestres.
É esse um dos mais incompreensíveis enigmas do homem-ego; ele adora devotamente os seus tiranos. Se não os adorasse, acabaria com esses ídolos. Mas o fato é que ele adora sadicamente os que lhe causam tamanhas dores – tão insincero é ele consigo mesmo. “Ama os teus inimigos” – será que o homem ego não parodia estas palavras do Cristo?
Quando, porém, esse homem suspeita a presença do seu Eu divino, nas entranhas do seu ser, então começa ele a sofrer as dores de parto da sua prole. Sofre a agonia duma “feliz insatisfação”. Compreende o que o Nazareno quis dizer com as palavras ditas à samaritana: “Quem bebe desta água torna a ter sede, mas quem beber da água que eu lhe darei nunca mais terá sede”, de outras águas que os profanos costumam oferecer a seus amigos. A mulher, “dos cinco maridos mais um amante”, no momento não compreendeu o sentido profundo destas palavras, como geralmente os profanos não as compreende.
Mas, quando o homem descobre o sabor das águas vivas, dá-se nele a grande metamorfose.
Parece-se então com uma dessas lagartas das nossas hortas ou pomares, em vésperas de transformação. Não comem mais, não se divertem mais: pressente uma vida nova, a vida ignota da borboleta alada. Esse homem parece triste e solitário, ensimesmado. Parece que toda a sua ruidosa explosão de ontem e anteontem se vai focalizar numa silenciosa implosão... A lagarta do ego, no acaso da sua metamorfose, suspende todas as atividades de outrora. Fecha todas as portas para o mundo exterior... Enclausura-se num invólucro impenetrável, hermeticamente fechado, e dentro deste esquife-berço o ego morimbundo preludia a vida do Eu nascituro... Vai elaborando os órgãos da sua incógnita borboleta.
Como será essa borboleta do Eu nascituro? Dessa nova e nunca vista creatura, que dormia invisível na lagarta do ego?
De modo algum pode a lagarta saber dos mistérios do lepidóptero nascituro – mas o seu subconsciente vital dirige tudo com infalível acerto e segurança, rumo à existência alada de amanhã; a sua fé biológica lhe inspira tudo o que tem de fazer...
Quando o homem se acha maduro para essa metamorfose, o supraconsciente dormente nele, a sua anima naturaliter cristiana, sabe como elaborar os órgãos e as faculdades necessários para uma vida nova em outra dimensão.
“Se o grão de trigo não morrer...”
“Eu morro todos os dias...”
e a alvorada do Eu Crístico, que nasce do ocaso do ego-humano em nada se parece com o que foi – assim como a borboleta nenhuma semelhança tem com a lagarta que se arrastava nas poeirentas baixadas da terra e não fazia senão comer e digerir. O lepidóptero voeja nas luminosas alturas do sol, e só desce de vez em quando para posar sobre uma flor e beber uma gotinha de néctar do perfumoso cálice.
Assim o Eu divino do homem, redimido das misérias do ego-humano, contempla de cima todas as coisas da terra, mantendo apenas o contacto indispensável com as debaixo, enquanto vive na pureza da luz celeste...
Lá se foi a sua infeliz satisfação de anteontem, bem como a sua feliz insatisfação de ontem!...
Despontou a feliz satisfação de hoje, de amanhã e de sempre...
A fome e sede da verdade foram, finalmente, saciadas...
Mas, para que a lagarta rastejante pudesse transformar-se na borboleta voadora, foi necessário que se interpusesse entre as duas vidas uma espécie de morte, a pseudo morte da crisálida...
A vida da borboleta é a mesma vida da lagarta; é a mesma essência vital, numa outra existência; é uma sublimação e transformação duma vida única – e esta metamorfose foi realizada graças à passagem pela pseudo morte da crisálida. Se a lagarta não tivesse uma fé biológica na vida, não permitiria, serena e calma, um mergulho nessa morte misteriosa da crisálida...
“Eu sou a ressurreição e a vida; quem tiver fidelidade a mim, não morrerá, e, ainda que tenha morrido, viverá para todo o sempre”.