terça-feira, 14 de outubro de 2008

3 – BEM-AVENTURADOS OS MANSOS, PORQUE ELES POSSUÍRÃO A TERRA

Antigamente, desde os tempos de Newton, o Universo se parecia com uma espécie de monarquia solar ou estelar; o nosso sistema planetário era regido por Sua Magestade o monarca “Sol”, que dava ordens aos seus súditos planetários, mediante as forças de atração e repulsão, e estes obedeciam à autoridade solar. Era o regime da autoridade e da obediência.
Em nossos dias, porém, Einstein vê no Universo uma fascinante cosmocracia, cujo soberano não tem localização determinada, nem irradiação central, mas está onipresente e atua simultaneamente de dentro de cada átomo. O conceito de uma força central mecânica foi substituído pela visão da presença orgânica. A técnica da máquina solar cedeu à concepção de uma espécie de vida cósmica universal.
Esta visão do centro como onipresença faz lembrar as palavras de Santo Agostinho: “O centro de Deus está em toda parte”.
É este o segredo da alma da natureza, que atua através de uma força sem esforço, que na intuição de Salomão, abrange o cosmos de uma à outra extremidade e dispõe tudo com poder e suavidade: “A sabedoria de Deus brinca todos os dias sobre toda a redondeza da terra”.
Na natureza tudo acontece com poder e silêncio, com um silêncio poderoso; o sol nasce e se põe em profunda quietude; o sol move gigantescos sistemas planetários, mas penetra suavemente pela vidraça de uma janela sem a quebrar, acaricia as pétalas de uma flor sem as lesar e beija as faces de uma criança dormente sem a acordar. As estrelas e galáxias descrevem as suas órbitas com estupenda velocidade pelas vias inexploradas do cosmos, mas nunca deram sinal da sua presença pelo mais leve ruído. A Luz, a vida e o espírito, os maiores poderes do Universo, atuam com a suavidade de uma aparente ausência.
Como nos domínios da natureza, o verdadeiro poder do homem não consiste em atos de violência física, mas sim numa atitude de presença metafísica; não se trata de fazer algo, mas de ser alguém.
Quando o homem atinge o clímax do seu poder toda a antiga violência acaba em benevolência. A violência é sinal de fraqueza, a benevolência é indício de poder. O homem-ego confunde violência com poder, mas o homem-Eu evita toda violência quando entra na zona do poder; para ele, ahimsa (não violência) é inseparável da satyagraha (apego à verdade).
Somente o homem-ego, na zona da evolução mental, embora tenha superado o natural, não entrou ainda no mundo espiritual; por isto julga necessário usar violência para manifestar poder.
Entre o natural e o espiritual vigora uma secreta afinidade, ao passo que o mental está em luta entre esses dois mundos.
A proclamação de que os mansos são os realmente felizes e possuirão a terra, é uma visão profética, uma antecipação apocalíptica de uma futura humanidade, que estabelecerá o Reino de Deus sobre a face da terra pelo misterioso poder da benevolência, e não pela ominosa fraqueza da violência.
E quando aparece um homem que revela o seu poder pela mansidão, pode ele ser considerado como um espécime e uma antecipação dessa humanidade do futuro.
O profano comum entende que o homem espiritual é uma espécie de “galinha-morta”, que não deve insistir nos seus direitos, que deve tolerar com apatia e indiferença todos os abusos e não reprimir com energia nenhuma indisciplina; não compreende que a expulsão dos vendilhões do templo seja compatível com a alta espiritualidade do Nazareno. O homem profano identifica mansidão com fraqueza e indiferença, rigor e energia com ausência de espiritualidade; não
compreende que o homem espiritual possa defender com entusiasmo uma causa sagrada, sem ser impelido por nenhum sentimento de egoísmo ou ofensa pessoal.
Os grandes Mestres, porém, sabem ser severos e rigorosos sem renegarem a mais perfeita mansuetude e benegnidade; são, por vezes, tão carinhosamente cruéis que nenhum profano cruelmente cruel é capaz de os compreender.
Violenta non durant, diziam os antigos romanos, as coisas violentas não duram.
O ego tenta apoderar-se e possuir as coisas da terra pela violência – e por isto nunca as possui realmente. É que as coisas do mundo de Deus têm um misterioso instinto, como que um sagrado pudor de não quererem ser violentadas e estupradas. As filhas da natureza são tão delicadas e virginais que não querem ser possuídas à força. Quem delas se apodera não as possui, embora as tenha encarceradas, encaixotadas e engarrafadas; ainda que as registre e carimbe como sua propriedade, com todos os seguros da burocracia social.
As coisas do mundo de Deus só podem ser realmente possuídas assim como o Deus do mundo as possui: com suavidade e ternura; assim como a luz possui as flores, como o amor possui o amado, como a alma possui o corpo, como a vida possui o organismo.
Quando algo ou alguém não quer ser possuído, nada e ninguém o pode possuir, embora o segure entre os dedos crispados ou guarde num cofre forte, por detrás de sete chaves.
Possuível e possuído é somente aquilo ou aquele que deseja ser possuído. Do contrário, podem ser os dois uns possessos – mas não há possuído nem possuidor. Onde não há espontaneidade bilateral não há verdadeira posse nem possuimento.
Como dissemos, a posse é muito mais uma atitude metafísica do que um ato físico. Possuir é algo do mundo da luz, da vida, do amor, do espírito – e não da matéria.
E é precisamente por esta razão que os possuidores da terra são os não-violentos, os mansos, os gênios das auras imponderáveis, e não da matéria ponderável. Os violentos, sobretudo os da violência mental e emocional, nunca possuirão nada, embora o tenham preto sobre branco, registrado e carimbado no cartório.
Julgam possuir as coisas da terra, mas são apenas por elas possuídos e possessos.
O que é violentamente possuído está envenenado por fluidos maléficos e será sempre um malefício para o seu possuidor.
O que Deus uniu homem algum o pode desunir – mas Deus é amor.
O que não é unido pelo amor não é realmente unido.
Quem não possui pela alma não possui.
O Universo e todas as suas riquezas são daqueles que deles não se apoderaram e em voluntária renúncia abriram mão de tudo e não possuem nada.
O desapego é o único meio de possuir.
A total libertação é a única posse real.
A verdadeira posse não é um ato físico, mas sim uma atitude metafísica do homem.
As palavras do Nazareno sobre a posse da terra pelo não-possuimento, pela mansidão, só tinham sentido depois da experiência mística duma “noite toda em oração com Deus”. Semelhante paradoxo não era possível num ambiente de profanidade ou mera intelectualidade. Aliás, os grandes paradoxos da verdade brotam sempre do mundo invisível do espírito, e nunca do mundo visível da matéria nem do intelecto.
Quando a natureza percebe que o homem não lhe corre no encalço para se apoderar dela, ela mesma vai no encalço do homem para lhe oferecer espontaneamente seus tesouros.
Quando a natureza percebe que o homem a cobiça, afasta-se dele, porque o secreto heliotropismo de todas as coisas de Deus desconfia do homem que a adora ou explora. A natureza não quer ser idolatrada nem brutalizada pelo homem. Não quer ser ídolo nem escrava, mas amiga do homem. Não quer ser obrigada a servir, quer servir espontaneamente ao homem, assim como serve a Deus em exultante liberdade.
Quem algo espera do mundo, deste nada pode o mundo esperar – mas quem nada espera do mundo, deste pode o mundo esperar tudo.
A violência consiste invariavelmente em atos do ego – a mansidão é sempre uma atitude do Eu.
Não necessita de compulsão quem possui compreensão.
Não necessita de forçar quem sabe amar.
Barulhenta é toda violência, silenciosa é a mansidão.
Não necessita de apelar para a força material quem tem em si o poder espiritual.
Suave e silencioso é tudo que é grande, violento e ruidoso é tudo que é pequeno.
Se os homens de Deus não fossem mansos, não agiriam como Deus age.
A mansuetude pode parecer fraqueza aos olhos dos violentos, mas ela se sabe mais forte do que toda a violência dos pseudo-fortes.
Quem é forte não tem necessidade de ostentar violência – somente os fracos têm mania de serem violentos.
A violência é como a alopatia, que remedeia os sintomas imediatos do mal, mas não cura a causa profunda dele; a mansidão atua como a homeopatia, é de ação lenta e profunda, embora não se lhe perceba efeito imediato.
A violência calcula tudo a curto prazo, ao passo que a mansidão visa tudo a longo prazo.
O míope tem de ser violento porque lhe falta a longe-vidência; atua no tempo e no espaço, e não no eterno e no infinito.
O homem manso pode parecer um derrotado – mas a sua aparente derrota é sempre uma vitória verdadeira; na sua retaguarda marcha sempre a vanguarda; em todas as suas fraquezas é ele sempre um herói.